Primeiramente, convido a todos a prestar um momento de reflexão sobre o peso da obra e a importância que ela possui, mesmo que inconclusa, para a vida de cada. Respeito. Uma palavra que inúmeros otakus costumam esquecer, menosprezando a vida que trabalha, o sangue e suor do dia a dia que produz o que consumimos.

Não sou santo, muitas vezes menosprezo o humano para julgar o artifício e produção resultante de seu esforço, maldizer, e de um pedestal de poder, qualificar o seu valor ou desvalor. Infelizmente isso também é humano de nossa parte, mas me entristece o corriqueiro sentimento que se expressa por fóruns e conversas, perco completamente a motivação de interagir em debates movidos a egos, verdades e vaidades. A crítica é só uma palavra vazia que busca provar os contornos de nossas fragilidades em plena ignorância.

Não busco fazer juízo de superioridade, pois as regras do debate estão assim estabelecidas, quem não coaduna, que se afaste, e me afasto. A gentileza morre quando o rancor habita a alma, e todos sofrem, todos odeiam, se desesperam e gritam para existir, mesmo que esse grito seja uma ofensa que utiliza o outro como combustível para fortalecer a nossa efêmera identidade, razão, ou qualquer possível carência a ser preenchida.

 

 

A solidão que senti com a notícia da morte de Miura, e agora adentrando o tema e a resenha propriamente dita, é uma coisa só minha, embora saiba que não sou o único órfão, e que estou acompanhado por uma legião de fãs do grande mestre, para mim, que sinto, é um sentimento só meu. E isso se aplica a todos os demais animes/mangás ou obras em geral que orbitam a minha existência. Não desejo ferir a existência de ninguém, seja do fã, seja do criador, e não posso colocar panos quentes em quem tem por costume o fazer.

Os filmes de Berserk não são perfeitos, de modo algum, assim como desconheço algo que o seja, mas são pertinentes, reais, e aqui estão para me entreter e me honrar com sua interlocução. Vamos ao primeiro dentre os três filmes dessa obra.

Berserk: Ougon Jidai-hen I – Haou no Tamago, nos introduz as circunstâncias que levaram a Guts, um jovem mercenário cercado pelo cheiro de sangue de uma era belicosa, movida a interesses espúrios dos nobres em uma sociedade medievalesca, a conhecer o líder carismático Griffith, comandante do bando e exército mercenário Taka no Dan.

 

 

Não existe segredo nesse laço, Guts apresenta sua hábil e suicida força em combate. Lutando em favor dos Tudor, nesse momento, o guerreiro, ainda jovem, apenas exibe sua imponente coragem ao enfrentar o general de um forte de Midland. Vence ao custo da sorte, mas captura a atenção da plateia.

Os integrantes do Taka no Dan, principalmente Corkus, desejam derrubar o ousado jovem, e no decorrer do combate, até mesmo Casca e Griffith acabam tendo que interferir, pois Guts se prova verdadeiramente um pé no saco.

Griffith é um estrategista, alguém que conhece o valor das pessoas, sejam como aliados, sejam como ferramentas, e embora quase mate Guts, o permite, por capricho, viver, para com isso utilizá-lo como seu aliado, o recrutando praticamente à força para integrar como um soldado em seu bando.

 

 

A era de ouro, nome desse arco em Berserk, é um arco singelo, que nos abraça muito mais pela atmosfera e trajetória dos protagonistas, do que pela sua real complexidade. Guts protagoniza por anos a função de general da tropa de ataque no Taka no Dan, período durante o qual Griffith se destaca como um vencedor absoluto, conquistando em campo de batalha a hegemonia e a inveja rancorosa da nobreza de Midland.

O filme, se analisado pelas partes técnicas, é dúbio, apresentando lutas e combates por vezes ineficazes, que utilizam CGIs pouco convincentes, para dizer o mínimo, é que não agradam em completude, embora efetivem o seu papel. No entanto, nos momentos de close, de destaque dramático e de fluxo narrativo visual, a obra encanta absurdamente. É belo, é intenso, expressivo e digno de nota.

No quesito desenrolar do enredo, podemos cismar devido a simplificação, ritmo acelerado e atropelamento circunstancial da consolidação da trama. Quem não conhece a obra, talvez pouco perceba, mas o filme enxuga e muito a densidade desse arco. Em comparação, o anime de 1998, Kenpuu Denki Berserk, que adapta o mesmo arco do mangá, consegue ser primoroso em sua total materialização desse segmento da obra.

 

 

Por mais que o filme seja, nesse sentido, uma expansão de rememoração para os velhos fãs, para os novos, é mais um chamariz para possíveis adaptações da obra, o que de fato se estabelece anos depois. O primeiro filme aqui resenhado foi lançado em 2012, mas em 2016 uma sequência adaptativa da obra continua a história. Essa sequência é polêmica, entretanto, a defendo com unhas e dentes, apesar de reconhecer suas inúmeras limitações, prezo, sobretudo, sua pertinente adaptação no sentido de roteiro e esforço, assim como bem introduzi ao começo deste artigo.

Como me limito a comentar o filme, não direcionarei prosa para o anime de 2016. Retomando o fio da meada, a era de ouro se caracteriza pelos laços humanos que Guts fundamenta ao participar de uma literal família. O bando Taka no Dan, é sua casa, ele se vê pela primeira vez em sua vida, feliz, apesar de melancólico e carrancudo.

Nesse primeiro filme, Griffith, sendo ameaçado pela corte da nobreza, que atenta contra a sua vida, apesar de ele o bando estarem sobre as graças do rei, ao ponto de um plebeu, como ele, ser gratificado com o título de nobreza pelos serviços prestados em campo de batalha, sua invicta campanha que em muito salvou o reino de Midland e ofereceu a este as vantagens no desenrolar do conflito. Taka no Dan lutou por anos a fio ao lado do reino, e claro, seguindo os desígnios de Griffith, uma pessoa que não dá ponto sem nó.

 

 

Julius, o irmão do rei, e principal responsável pelo exército do reino, após perceber a real ameaça que Griffith representa, e movido pelas vaidades da corte, arma contra ele, como bem disse antes, entretanto, Griffith, o falcão, ardiloso como sempre, envia Guts para assassinar o nobre traiçoeiro.

Nesse ponto temos o ápice da devoção e amizade de Guts, e por outro lado, o ápice da maquiavélica mente de Griffith. Guts como o filme apresenta em fleches esparsos, nasceu de um cadáver, uma mãe enforcada em uma árvore. Foi resgatado e criado por mercenários, abusado sexualmente, treinado brutalmente e, por fim, em autodefesa, e depois como ato de vingança, eliminou os seus agressores.

Para Guts, Griffith era a luz, a esperança de uma vida e até mesmo a cura de seus traumas, mas para Griffith, em superfície e até certo ponto, Guts era apenas uma ferramenta. No evento pós assassinato de Julius, e por efeito colateral, do brutal e doloroso assassinato de seu filho, Adonis, um doce jovem ao qual Guts instintivamente, e ineptamente, acaba matando. E destaco, esse foi um dos maiores pecados de Guts em toda a história.

 

 

Em busca de Griffith, Guts e Casca se deparam com uma cena central, presenciam as palavras e a conversa de Griffith com a princesa Charlotte, à qual o líder do Taka no Dan corteja pelas bordas. As palavras de Griffith são veneno puro para Guts, que escuta da boca do benfeitor a sua real consideração em relação a ele. Para Guts, descobrir que seu general o considerava um ser menor, alguém submisso e de consideração menor, que nunca poderia ser um igual, um amigo, e isso logo após cumprir a missão de assassinar o conspirador de Griffith, retiram o chão e apaga completamente a esperança de Guts. Esse evento é o gatilho para as futuras resoluções de Guts, às quais desencadeiam tudo o que Zodd havia previsto.

Antes de relatar o papel de Zodd e do Behelit, retomo a Casca, que também escuta o mesmo discurso de seu líder. Casca, ao contrário de Guts, sabia que nunca seria uma ferramenta à altura de seu comandante. Como mulher, mesmo que grata e eternamente em dívida com ele, por ajudá-la a se defender e acolhê-la quando desamparada, sentindo ciúmes de seu laço com Guts, ou mesmo tendo rivalidade com ele devido a seu destaque absoluto no campo de batalha, ao ouvir de Griffith o que em íntimo já sabia, apenas se resigna, e nesse momento, mantém a sua devoção inabalável, ao contrário de Guts, que perde completamente a ilusão que tecerá.

 

 

E por fim, nesse primeiro filme temos o elemento fantástico que atropela um cenário até então completamente mundano. Zodd é um mercenário que batalha ao lado dos Tudor, conhecido como o imortal, a mais de 300 anos ele vaga pela matança desenfreada como um demônio bestial imbatível. Quando se depara com Guts e Griffith, sente na pele a habilidade dos guerreiros, que nesse momento ainda não tinham chances contra essa esfera de surreal desespero encarnado. No entanto, quando eliminaria a ambos, se depara com o ovo do rei, o Behelit que Griffith ganhou de uma velha bruxa em sua infância, artefato que não apenas representa a sua sina, como caracteriza a sua alma. O ovo da ganância, do sacrifício, é o símbolo do novo governante do mundo demoníaco. Ou mundo mágico, não sei ao certo como me referir aos segredos do véu que revestem a realidade humana em Berserk.

Zodd se afasta e profere a profecia a Guts, quem acompanha o portador do Behelit tem um destino fadado a aniquilação, o que, no momento, ainda não faz qualquer sentido para o guerreiro, no futuro representa a amplitude completa dessa obra primorosa que o mestre Miura nos legou, e a qual, infelizmente, termina junto a sua inevitável morte recente.

 

 

Que a bela trilha sonora composta por Susumu Hirasawa nos embale para o segundo filme da trilogia, até breve pessoas.

 

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