Concrete Revolutio – (Super-)humano, demasiado (super-)humano
Ao lado dos EUA, o Japão é o país com o cânone de super-heróis mais famoso do mundo com seus Ultramans, Super Sentais, Kamen Rider, Metal Heroes, Henshin Heroes e tantas outras franquias disponíveis em mangás, animes, cinemas e, sobretudo, programas de TV. Várias tentativas foram feitas para adaptar e/ou transcrever essas produções para o formato animado, desde curiosidades como o anime de Ultraman produzido pela Sunrise, passando pelo obscuro OVA Hikaruon do estúdio AIC, lançado em 1987, até a demência charmosa de Samurai Flamenco cometida pelo finado estúdio Manglobe em 2013. Nenhum dos citados, porém, teve o grau de ambição e de relativo sucesso na empreitada quanto Concrete Revolutio.
Produzido pelo estúdio Bones (FMA e FMA: Brotherhood, Noragami, Boku No Hero Academia) com direção de Seiji Mizushima (que dirigiu as duas versões de FMA, bem como outras franquias famosas como Gundam) e roteiro de Shou Aikawa (veterano que desde os anos 80 escreveu diversos roteiros tanto para animes quanto para tokusatsus, entre seus créditos estão Spielvan, Kamen Rider Blade e Decade, Dangaioh, Nadesico, o primeiro FMA, Garo, Eureka Seven: AO e muitas outras obras) e exibido durante a temporada de Outono de 2015 (com uma segunda cour exibida durante a temporada de Primavera de 2016), Concrete Revolutio: Choujin Gensou, com o subtítulo de “The Last Song” na sua segunda metade, é uma ambiciosa “carta de amor” a basicamente todos os gêneros de super-heróis que o Japão produziu desde o começo do século XX, mas não apenas a eles. Há referências a filmes e programas norte-americanos, além de quadrinhos e até referências a figuras históricas. História, alias, é algo extremamente importante para se entender os personagens e eventos de Concrete Revolutio. Vários momentos da história japonesa são citados durante seus episódios, especialmente o turbulento final dos 1960 com seus inúmeros protestos contra a presença americana em território japonês.
A enorme quantidade de referências e citações tanto históricas quanto da cultura pop nipônica são, ao mesmo tempo, o destaque positivo e o negativo da série, mas chegaremos lá em pouco tempo.
A história de Concrete Revolutio se passa no ano 41 da Era Shinka (equivalente à Era Showa do nosso mundo), 20 anos após a “Grande Guerra” (referência pouco velada à 2ª Guerra Mundial). O Japão deixou para trás seu período de destruição e se desenvolve a olhos vistos. Porém, criaturas com poderes sobre-humanos ameaçam o frágil equilíbrio alcançado e, para ter o controle da situação, o governo japonês criou o “Bureau de Super-humanos”, um órgão cuja missão é monitorar, proteger, orientar e, em último caso, exterminar super-humanos considerados irremediavelmente perigosos. Na ponta de lança do Bureau está o jovem idealista Jirou Hitoyoshi, auxiliado pelo misterioso Jaguar e pela bela e igualmente misteriosa Emi. A eles se juntam a bruxa Kikko Hoshino e o fantasma Fuurouta na missão de impedir que super-humanos usem seus poderes em proveito próprio e acabem pondo em risco a vida da população, bem como a de outros super-humanos. Porém, ainda nos primeiros minutos do episódio de estreia, são mostrados eventos ocorridos 5 anos no futuro onde Jirou abandonou o Bureau e é caçado como um fugitivo pelos seus ex-companheiros. O que terá acontecido para que um jovem idealista como ele tenha abandonado sua missão e seus próprios companheiros?
Ao longo dos episódios da primeira cour, somos introduzidos a maioria dos personagens que impulsionarão a história. E que personagens! Como citado anteriormente, Concrete Revolutio faz uso exaustivo do cânone japonês de super-heróis a ponto de se tornar cansativo em alguns momentos. Bruxas/garotas mágicas? Tem, sim senhor. Alienígenas? Tem também. Criaturas sobrenaturais oriundas do folclore da Terra do Sol Nascente? Com certeza. E robôs, ciborgues, heróis mascarados, mutantes, cientistas malucos, exorcistas, esquadrões de crianças prodígio, seres imortais, pilotos de robôs gigantes…ufa! (uma lista com as possíveis referências a quase todos esses personagens pode ser conferida aqui). Em maior ou menor escala, quase todos os personagens orbitam em torno de Jirou, por vezes indo de encontro a sua visão de mundo idealista e ingênua, mas sempre acrescentando algo ao personagem ao mesmo tempo que são influenciados por seu carisma e sinceridade. Em nenhum outro personagem isso fica mais evidente quanto no detetive Shiba Raito. Humano de nascimento, o policial Raito morreu em serviço, mas teve sua consciência transplantada para um corpo cibernético. Apesar disso, ele se recusa a ver a si mesmo como um super-humano, muitas vezes se opondo ao Bureau durante suas investigações. Com o passar do tempo, ele passa a nutrir um misto de rivalidade e admiração em relação a Jiro, a ponto de, no futuro, ser mostrado que ele próprio abandonou seu posto de detetive e passou a ser considerado um terrorista com uma visão bastante particular de justiça.
A princípio de natureza primordialmente episódica, Concrete Revolutio vai introduzindo seus temas e personagens em duas linhas de tempo distintas, uma no presente e a outra no futuro, o que pode confundir um pouco seu público. Cada episódio contém uma história com princípio, meio e fim, ao mesmo tempo que entrega pequenas peças do quebra-cabeça que deverá ser montado pelo telespectador para se obter o retrato completo. Com exceção de um único personagem introduzido durante o primeiro cour, mas cuja motivação só se torna clara na segunda metade, não vilões de verdade nesta série, todos e todas são vítimas das circunstâncias em maior ou menor grau, seja por eventos alheios à sua vontade, seja por serem escravos e escravas dos seus impulsos e ideologias.
Com todos os seus pontos positivos (e são muitos), os defeitos de Concrete Revolutio são notáveis. A quantidade de referências a elementos da cultura pop e eventos da história da japonesa podem cansar os telespectadores cujo interesse pela cultura de outro país seja pequeno. Muitos dos personagens introduzidos acabam tendo pouco desenvolvimento, algo evidente em relação à Kikko Hoshino e Emi, cujos papéis não vão muito além de serem interesses românticos de Jiro, embora, sendo justo, elas desempenhem arcos importantes em momentos cruciais da história. As duas linhas de tempo que seguem paralelas por boa parte da série também não facilitam as coisas e, em alguns casos, dificultam qualquer identificação com alguns dos seus personagens (por que eu deveria me importar com o que aconteceu com personagem X, Y ou Z no futuro se eu acabei de conhecê-lo). Direção e arte são competentes, raramente decepcionantes, mas não empolgantes o tempo todo, com seus cenários que parecem saídos de alguma exposição de Arte Pop sessentista e personagens inspirados por artistas como Shotaro Ishinomori, Go Nagai, Ken Ishikawa, Takao Saito, dentre outros. A animação é decente a maior parte do tempo, com ênfase nas cenas de ação, especialmente naquelas animadas pela lenda viva Yutaka Nakamura, com destaque especial para os momentos envolvendo Shiba Raito.
Concrete Revolutio é uma série que, por vezes, parece a ponto de sucumbir sob o peso da própria ambição, mas que, no final das contas, consegue entregar uma história com bons personagens não maniqueístas, boas cenas de ação e discussões interessantes sobre o que significa ser humano e a natureza da justiça. Indicado para todas as pessoas que cresceram assistindo tokusatsu na saudosa Rede Manchete, fãs de quadrinhos “sérios” como Watchmen, entusiastas de mecha, curiosos a respeito da história japonesa do pós-guerra, ou simplesmente quem gosta de boas séries originais, algo raro hoje em dia. Assistam, garanto que não irão se arrepender.