Akanesasu Shoujo – Garota, seja inteira
Bom dia!
O ser humano é um bicho complicado. O que você gostaria de fazer da sua vida? Uma profissão? Maternidade/paternidade? Escrever um livro? Ser famoso? Ser rico? Ser um ermitão nas montanhas? Consegue se imaginar em vários cenários diferentes, e você estaria feliz e realizado em todos eles?
Aliás, muito provavelmente a sua vida já é composta de muitos cenários diferentes. Você é uma pessoa em casa, outra na escola, outra no trabalho, e por aí vai. Todos eles são “você”. E você talvez ainda seja várias outras coisas, várias possibilidades que você gostaria de ser mas que não é, por um motivo ou outro. Talvez tenha motivos legítimos para isso, ou talvez esteja só se limitando, fazendo escolhas.
Às vezes, fazer essas escolhas dói. Deixa sequelas. E às vezes nem era preciso escolher em primeiro lugar, mas quando a pessoa percebe já é tarde demais. Já escolheu ser uma coisa e não ser outra coisa.
Em Akanesasu Shoujo as cinco garotas vivem assim, divididas entre quem elas são e quem elas poderiam ser, gostariam de ser, ou têm medo de que se tornem. Todas elas vão descobrir ao longo do curso do anime que não precisavam escolher: para serem de verdade, para serem felizes, para serem elas mesmas, elas têm que ser tudo o que podem ser. Inteiras. A harmonia na contradição.
Esse anime usa o fantástico como recurso narrativo para conduzir as tramas das suas personagens, materializando metaforicamente seus conflitos. É um anime de ação, de ficção científica.
Não existe apenas um mundo, mas vários mundos. São todos muito parecidos mas diferentes, e eles coexistem. É possível viajar de um mundo a outro, ou assim diz uma lenda que Asuka, a protagonista, conhece e passa para suas colegas do Clube de Pesquisa de Rádio.
É uma coisa que soa uma lenda urbana do mesmo nível do tabuleiro de ouija ou de abduções extraterrestres, exceto que em Akanesasu Shoujo o multiverso é real e elas descobrem isso logo no primeiro episódio.
O mundo no qual vão parar, contudo, tem algo de estranho.
Ele parece um imenso vazio amarelo. Estará morto? Elas não tem tempo de investigar, porém, porque logo são atacadas por criaturas que parecem coelhos fofinhos amarelos que tentam devorá-las. Felizmente, elas são salvas pela Asuka.
Não pela Asuka delas, mas por uma Asuka de outro mundo. É então que elas descobrem que existem vários mundos mas que eles estão em perigo: o Crepúsculo está consumindo mundo atrás de mundo. O Crepúsculo vem a ser justamente o nada amarelo que elas testemunharam.
A Asuka de outro mundo as alerta para parar com essa brincadeira. O mundo delas ainda é seguro, mas o dela está lutando contra o Crepúsculo. Elas devem apenas aproveitar a vida pacífica que têm.
É claro que não é isso que elas vão fazer. A versão de outro mundo de uma delas (Yuu) também está viajando de dimensão em dimensão, toma gosto pelas garotas e começa a enviar para elas os códigos que as permitem viajar para outros mundos. Para outros mundos elas viajam.
Mia é a mais nova e a mais bonita, bem comportada e de fala mansa das cinco. Como resultado de sua aparência, todos ao seu redor esperam que ela sejam uma garota fofa e que cresça para se tornar uma mulher fofa. Ela até gosta de ser fofa.
Mas ela também gosta de filmes de ação e de heróis – em particular, ela gosta bastante do gênero western. Para a sorte dela, um desses mundos que elas visitam é uma versão western do mundo delas. Nessa realidade paralela ela pode se tornar a heroína que sempre quis ser.
Quando ela se deixa levar pelo seu senso de justiça e decide fazer o que é certo sem, contudo, renegar seu lado suave, ela entra em harmonia consigo mesma e adquire a habilidade de se transformar.
Algumas pessoas são capazes de se transformar nesse multiverso. A Asuka de outro mundo e a Yuu de outro mundo estão entre essas poucas pessoas. Ao longo do anime, as várias garotas de Akanesasu Shoujo adquirem essa habilidade também, e isso sempre acontece quando elas resolvem o conflito interno que as dividia em dois.
No caso de Mia, como visto acima, era o conflito entre ser uma garota forte e ser uma garota fofa. Ela pode ser os dois. No caso de Nana era outro conflito também muito comum: seu pai morreu e sua mãe se casou de novo.
Isso a leva a pensar coisas horríveis de sua mãe. Como ela pôde fazer isso? E a memória de seu pai? Apesar de toda boa intenção do padrasto, nunca o aceitou também. Ela não se tornou exatamente uma rebelde em casa, mas “compensou” isso sendo uma garota fútil, que não se preocupa com o futuro.
Suas notas são ruins, ela gosta de moda, fofocas e atores bonitões, você sabe como é o clichê. No fundo, ela só queria chamar atenção. No fundo, ela sabia que sua mãe não havia feito nada de errado. Ela em seu lugar teria feito o mesmo.
Mas depois de ir tão longe, como admitir? Nada que uma realidade paralela em que ela quase se casa com um galã de cinema não resolva.
Talvez ela ainda continue sendo um pouco fútil, fofoqueira e tiete de artista. Talvez ela venha a ter vários namorados, vários maridos. Isso não importa. Não muda a pessoa que ela é. Ela aceitou sua mãe e seu padrasto no momento em que aceitou a si mesma. E passou a ser menos auto-destrutiva, se preocupando com suas notas na escola, já que não fazia mais tudo isso só para chamar atenção.
Chloe é mestiça e viveu parte de sua infância fora do Japão. Ela nunca absorveu totalmente as diferenças entre as sociedades. Por causa de seu antigo modo de vida, ela gosta de ficar sozinha, de fazer coisas que pode fazer sozinha, como ler livros e escutar música. No Japão, porém, ela logo arranja amigas e todo mundo está cercado por amigos e parece impossível viver sozinho.
Não que ela se importe em ter amigas. Ela gosta, de verdade. Mas ela também continua gostando de ficar sozinha, de ter seus momentos apenas para si mesma. Chloe começa a temer que seu novo estilo de vida esteja engolindo o seu antigo estilo de vida, e isso ela não quer.
Em seu arco, no qual ela pôde viver tão sozinha quanto gostaria, ela percebeu que um estilo de vida na verdade não exclui o outro. Ela sempre vai poder fazer o que quiser, sozinha ou acompanhada, como preferir.
Yuu e Asuka são casos mais complicados. A Asuka de outro mundo tenta descobrir mais sobre o Crepúsculo para poder salvar o próprio mundo. E a Yuu de outro mundo (que não é o mesmo da Asuka de outro mundo) parece que só… viaja entre os mundos, sem rumo ou objetivo?
A Yuu de outro mundo claramente gosta da Asuka, de todas as Asukas, e isso dá o primeiro vislumbre para a personalidade da própria Yuu. As duas parecem extremos opostos, com a Yuu sendo bastante séria e dedicada, enquanto a Yuu de outro mundo parece só fazer o que lhe dá na telha o tempo todo.
Conforme o final do anime se aproxima, fica claro que no meio de toda a galhofa o seu sentimento pela Asuka é verdadeiro, mas deslocado, o que é indício de que a Asuka de seu próprio mundo morreu, e as personalidades das duas convergem: a Asuka precisa da Yuu.
A relação entre Asuka e Asuka de outro mundo parece ser o exato oposto: a Asuka está sempre brincando, sempre fazendo o que quer fazer, enquanto a Asuka de outro mundo é séria e tem um forte senso de dever.
Em comum, as duas perderam seu irmão gêmeo, Kyouhei, há dez anos. De fato, conforme elas viajam por diferentes mundos descobrem que por mais diferentes que eles sejam, isso é uma constante: o Kyouhei desapareceu há dez anos.
A partir daqui, a resenha conterá spoilers mais pesados de Akanesasu Shoujo. Se não tiver assistido ainda e preferir aproveitar o anime sem spoilers, esse é o limite recomendado de leitura.
Não encontraram o Kyouhei ou sequer seu corpo. Nem no mundo da Asuka nem no mundo de nenhuma outra Asuka. Ele apenas desapareceu. Era uma criança pequena, então é de se assumir que esteja morto.
Mas se já é difícil aceitar a morte quando o cadáver está a nossa frente, quão mais difícil é quando não há cadáver nenhum? A Asuka, por exemplo, nunca desmontou o quarto do Kyouhei, que continua contíguo ao seu.
Esse é o conflito da protagonista.
Esse é o conflito do anime.
Lidar com a morte é difícil, e Asuka, que nunca superou a morte do irmão, ainda precisa lidar com a provável morte da Asuka de outro mundo, quando seu mundo finalmente é tragado pelo Crepúsculo.
Ela finge estar bem, mas no fundo não aceita. Yuu, que é sua amiga desde a infância e viu tudo isso acontecer quando o Kyouhei desapareceu, joga na cara da Asuka que ela está apenas fingindo e as duas têm uma briga feia. Asuka foge.
Na praia, Asuka encontra a si mesma. Outra versão de si mesma, uma que ainda é uma criança. Uma que está mais presa ao desaparecimento de Kyouhei do que ela mesma. Uma que está devastada. Uma que está devastando todos os mundos, levando o Crepúsculo a eles.
Yuu encontra a Yuu de outro mundo e aceita a sua verdade: ela ama Asuka. Provavelmente nesse sentido que você pensou mesmo. E corre para tentar salvar a amiga.
A Asuka Arauto do Crepúsculo não viveu em um mundo muito diferente do da Asuka. De fato, parecia igual. Só uma coisa, uma pequena grande coisa, diferenciou os dois: no mundo da pequena Asuka a Yuu se mudou exatamente quando a Asuka ainda estava passando pela fase mais difícil do luto.
Incapaz de suportar sozinha toda a dor, ela apenas desejou que nada mais existisse. Assim ela invocou o Crepúsculo. Com seus poderes ela procurou pelo Kyouhei em dezenas, centenas, talvez milhares de outros mundos, e não o encontrou em um miserável mundo que fosse. Ela destruiu cada um deles. E estava determinada a destruir todos.
Yuu se declarou e salvou Asuka mais uma vez, agora com a ajuda das demais, mas Asuka escolheu continuar com sua versão infantil. Conversar com ela. Entender ela.
Asuka sabia que estava, afinal, olhando para si mesma. Ela sabia que salvar aquela Asuka significava se salvar. Asuka foi a única que nunca se transformou ao longo do anime, porque foi a única que viveu sua contradição até o fim.
No final, Asuka salva Asuka. Ao se salvar, ela também salvou todos os mundos.
E, depois, desfez o quarto do Kyouhei.