O Kyoto Animation que eu conheço é eterno
Bom dia.
Era quase meia-noite, quarta-feira passada (17/07), e o Thárik, um dos redatores do Anime21, apareceu no chat do blog e disse: “Estúdio da Kyoto Animation tá pegando fogo bixo”.
Ele não é um cara muito sério, então pensei que estivesse falando no sentido figurado, “pegar fogo” de estar fazendo algo muito bem, sabe? Mas o que o estúdio, sem anime nessa temporada, poderia estar fazendo naquele dia 17 que merecesse a expressão? Logo pensei no pior.
E o pior é que eu estava certo. Passei aquela noite e depois o dia seguinte inteiro praticamente só acompanhando a cobertura. Trinta e três pessoas mortas no incêndio. Mais uma morreu no hospital dias depois. Várias ainda estão internadas.
Eu não tenho palavras para expressar meu pesar.
Assistir anime é uma atividade formadora. Aprendemos com os personagens, com as suas histórias. O Kyoto Animation, ou KyoAni, abreviatura carinhosa, criou alguns dos meus animes preferidos, então vou usar o que eles próprios ensinam para guiar esse texto.
Todos desejamos algo especial. Não necessariamente desejamos ser especiais, mas desejamos que o mundo que nos cerca seja algo especial, cheio de coisas especiais.
Como Haruhi Suzumiya, queremos ver extraterrestres, alienígenas e viajantes no tempo.
Para mim, para muitos, talvez para você, que está lendo esse artigo agora, animes são essa coisa especial em nossas vidas no mais das vezes monótonas e entediantes.
Como a monotonia, ou, não raro, a dureza mesmo do mundo, não parece ter fim, também não tem fim meu desejo por mais e mais animes. Como Eru Chitanda, de Hyouka, estou sempre curioso (Watashi kininarimasu!) – por mais animes!
Não é como se qualquer anime servisse, porém. Bem o contrário na verdade. A maioria dos animes é … qualquer coisa? Para ser educado. Histórias batidas, mal desenvolvidas, animação mal trabalhada, personagens que parecem saídos de linhas de produção em massa – e alguns ainda vêm com defeito de fabricação …
Esse é um mundo no qual o fantástico existe mas nem sempre é bom. Como o de Musaigen no Phantom World.
No nosso mundo existem bons diretores, bons roteiristas, estúdios que acertam mais do que outros, mas se eu tiver que escolher um único estúdio e só assistir animes dele, vai ser o Kyoto Animation.
Não é que eles acertem sempre. Mas acertam com frequência. E mesmo quando erram, não erram tanto assim. Nunca cheguei nem perto de ter desgosto de um anime do estúdio ou de querer dropá-lo. Todos os que vi conseguiram ser pelo menos minimamente agradáveis, mesmo quando não são muito bons. Isso é muito mais do que posso dizer de qualquer outro estúdio.
É como se eles fossem Haruhiko, Mai, Reina, Kurumi e Koito do já referido Phantom World, nos protegendo do que há de pior, mesmo que de vez em quando sejam meio desastrados.
E foi esse Kyoto Animation que, de anime em anime, entrou na minha vida. É como Tohru, de Maid Dragon, que entrou na vida de Kobayashi.
Tohru é de outro mundo, comete erros às vezes, pode até irritar, mas Kobayashi não vive mais sem ela. Esse sou eu com o KyoAni.
Assim somos várias pessoas. Minha vida normal é muito mais interessante, colorida, meu cotidiano muito mais divertido graças aos animes, muitos deles do estúdio em questão.
Yuuki, Mio e Mai também tem vidas normais em um mundo fantástico e histérico de tão hilário em Nichijou.
Animes são trabalhos em equipe. Sempre fica mais fácil lembrar os nomes de diretores, ou de roteiristas, ou dos autores dos materiais originais quando é o caso de adaptações, mas o anime em si é feito por muita gente.
Cada um contribui com a sua própria habilidade. Cada um carrega seus próprios problemas e angústias. E, no final, todos precisam estar em sincronia para criar as mais belas obras de arte. Animes, no caso, mas bem poderia estar falando das peças de orquestra que toca a Banda de Metais do Colégio Kitauji, de Hibike! Euphonium – um dos trabalhos mais deslumbrantes do estúdio, aliás.
Mas agora, depois desse incêndio criminoso, o estúdio se encontra como estava a banda de Hibike! Euphonium no começo da primeira temporada: desfalcada, em desarranjo. Ou como o parque de diversões de Amagi Brilliant Park.
O estúdio, como o parque, vai continuar? Vai fechar? Vai ter alguma mudança radical? E aquele anime que eu queria assistir e que …
Será que não há nada que possamos fazer? Eu não quero que seja o fim do Kyoto Animation.
Bom, a boa notícia é que não é como se não pudéssemos fazer absolutamente nada.
Tem um financiamento coletivo sendo conduzido pela Sentai Filmworks (distribuidora norte-americana de animes) para auxílio ao estúdio e às vítimas do incêndio. A gente pode doar.
Outra forma de ajudar é comprar arte digital na loja do Kyoto Animation. O processo é todo online e o dinheiro vai direto para eles. É em japonês mas não é difícil e tem esse guia aqui (em inglês, mas já é melhor do que japonês, né?).
Quem de nós não tiver dinheiro pode simplesmente mandar uma mensagem de apoio para o estúdio. Vá na sua rede social preferida (mas provavelmente é melhor no Twitter) e escreva o que pensa. Use hashtags com o nome do estúdio ou o popular #PrayforKyoAni.
Pode parecer bobagem, mas o próprio presidente do estúdio disse que as mensagens de apoio de todo o mundo se tornaram um apoio emocional para eles.
E para quem quiser, pode-se enviar uma mensagem através do Crunchyroll, que se prontificou a traduzir e entregar mensagens de apoio e até mesmo fanart que porventura alguém queira enviar diretamente para o KyoAni.
Há muito o que podemos fazer. E, ao mesmo tempo, somos todos impotentes. Não importa quanto dinheiro seja arrecadado ou quantas mensagens de apoio de quantas pessoas forem o estúdio receba, ainda não sabemos seu futuro.
E não temos, nós, controle nenhum sobre isso. Assim como Liz não tinha controle sobre o pássaro azul, no magnífico Liz to Aoi Tori.
É porque amamos o estúdio que devemos deixá-lo levantar voo por conta própria. Se vai continuar voando alto, como antes, ou se esse foi seu último voo, não cabe a nós decidir.
O Kyoto Animation agora é como Mirai, de Kyoukai no Kanata. A última sobrevivente de seu clã, com um poder único, assim como o processo de produção do KyoAni é único na indústria, mas Mirai está cheia de incertezas.
Foi apenas com a ajuda de Akihito e outros com poderes similares ao dela que Mirai conseguiu reunir coragem e seguir em frente.
Mais ou menos como em Koe no Katachi, em que foi preciso que duas pessoas quebradas salvassem uma a outra. Shouko e Shouya não encontraram a salvação em nenhum outro lugar, apesar de cercados de amigos e de famílias que os amavam.
A equipe do estúdio e os familiares das vítimas precisarão ser fortes e, à despeito de todo o apoio externo, no final precisarão depender de verdade uns dos outros.
Não deixa de ser poético, de uma forma macabra, que os dois últimos animes para a TV do Kyoto Animation tenham sido sobre superar tragédias.
Em Tsurune, Minato ama a arquearia japonesa desde criança, quando assistiu a um torneio junto com sua mãe. Pois eis que sua mãe morre e ele não consegue mais atirar. Ele nem quer mais atirar, acaba se convencendo.
É com seus ex-amigos de arco e com seus novos amigos de arco que ele supera seu medo e recupera a alegria no arco e flecha.
Em Violet Evergarden, o mundo acaba de sair de uma longa e devastadora guerra. A vida está voltando ao normal, os soldados estão voltando para casa, o que foi destruído está sendo reconstruído.
Mas muitas pessoas morreram e para seus amigos e parentes nada será como era antes. Ainda que se curem as cicatrizes do mundo, as cicatrizes da alma vão continuar para sempre.
É nesse mundo que Violet precisa aprender a caminhar por conta própria, depois de crescer como uma criança-soldado que dependia de tudo e para tudo do Major Gilbert, que a acolheu e tratou como ser humano quando todo mundo a tratava como um animal. O Major Gilbert morreu.
Por causa do incêndio criminoso do dia 18 de julho, em Quioto, 34 morreram como o Major Gilbert. Todos os demais, como a Violet Evergarden, precisarão aprender a seguir em frente de novo.
O que quer que aconteça, qualquer que seja a decisão dessas pessoas, qualquer que seja o destino do estúdio Kyoto Animation, eu estarei satisfeito.
Sei que falo pela equipe do Anime21 quando digo que torço pela recuperação dos feridos e quando presto minhas condolências às famílias e amigos dos falecidos, bem como a toda a equipe do estúdio por suas perdas materiais e, sobretudo, humanas.
Mas o que o Kyoto Animation já me deu até hoje é muito mais do que eu poderia ter sonhado, muito mais do que eu poderia ter pedido, e provavelmente muito mais do que eu mereço.
Sua obra é sua memória eterna.