Junketsu no Maria – ep 3 – A salvação pelo sacrifício
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Estava parecendo meio boboca mesmo que apenas por interferir com assuntos humanos usando sua magia o Céu decidisse por birra impôr a virgindade à Maria. Não vou dizer que a solução de Junketsu no Maria é ótima, mas acho que lidou bem com o problema. E como se trata de uma fantasia histórica é inevitável comparar Maria aos fatos reais da época em que a história se passa. Já tive contato com cristãos, e particularmente com católicos, profundamente incomodados com a forma como sua religião e sua igreja são retratados. É uma questão relevante o bastante para merecer tratamento nesse artigo. Não menos importante em se tratando de religião, parece confirmado que as bruxas no anime são de inspiração majoritariamente celta. É bastante coisa para um artigo só! Vou tentar falar o suficiente sobre tudo isso sem que o texto fique muito grande ou muito cansativo. Me acompanhe!
Matizes começam a surgir no anime. Não há um vilão bem definido que representa o mal absoluto, e os antagonistas parecem bastante humanos (ou bastante coesos, em se tratando dos anjos). O Arcanjo Miguel não queria punir Maria apenas porque sim: há uma regra, seres sobrenaturais não podem interferir de forma ostensiva em assuntos humanos, não importa a motivação. A regra não é absoluta, naturalmente, tanto que a própria Maria já havia interferido vezes suficientes sem sofrer nenhuma forma de sanção (mas recebeu algumas advertências). Miguel só pareceu um babaca porque coube a ele a tarefa ingrata de punir a bruxa descontrolada. Mais: após todos os seus pleitos e após a intervenção de Ann e Joseph à favor de Maria, foi dada a Maria uma segunda chance. Ela pode até mesmo continuar usando sua magia, só não pode absolutamente fazer isso de forma ostensiva (convocando criaturas místicas, por exemplo). E para provar que ela está mesmo agindo por puro altruísmo e também para se redimir de seus pecados, ela pode continuar usando sua magia (com a limitação já mencionada) desde que em troca abra mão dos prazeres terrenos, ou mais especificamente, desde que mantenha sua virgindade. O sacrifício prova a devoção (não a Deus no caso de Maria, mas a sua determinação benevolente de impedir guerras) e traz a salvação.
Não sou um especialista em cristianismo, mas me parece suficientemente verossímil. Para reafirmar essa postura e demonstrar que ela não é apenas a postura da Igreja do Céu mas também a da Igreja da Terra, é apresentado um personagem novo que creio será muito importante na história: o monge Bernard. Ele ouve as histórias sobre Maria, e reconhecendo que suas ações são bem intencionadas, ainda que heréticas, ele conversa pessoalmente com ela e a oferece o perdão desde que ela demonstre arrependimento – ou seja, desde que ela se confesse e abra mão da bruxaria. Claro que Maria não quer nem saber disso e até mesmo se ofende com a oferta do monge. Bernard, mesmo que tenha decidido depois disso que a bruxa é sim inimiga da igreja e reconhecendo que em algum momento futuro terão de lidar com ela, ainda deseja sinceramente que ela receba o perdão de Deus. Interessante notar que Maria é uma virgem que foi visitada por um Arcanjo e que seu par romântico é José (Joseph).
Nesse momento, pode parecer que é Maria quem está parecendo teimosa e irredutível, mas não é preciso se debruçar muito sobre a questão para compreender como é incômodo, ofensivo mesmo quando você só está fazendo o que acha certo e alguém diz que você está errado. Além de alguns aldeões e de Joseph, parece que Maria não terá suas boas ações reconhecidas por ninguém – e se tivesse, não estaria apenas alimentando o próprio ego ao invés de agir verdadeiramente pensando no bem alheio? Enfim. Não só a reação de revolta da Maria é compreensível como também é compreensível a desconfiança pessoal dela com a igreja e seus representantes no céu e na terra. Bruxas são queimadas na fogueira! Até uma não bruxa, Joana D’Arc, foi queimada na fogueira acusada de … bruxaria!
E essa é minha deixa para tratar das incorreções factuais de Junketsu no Maria. Começo pelo caso recém descrito: a verdadeira Joana D’Arc não foi condenada por bruxaria, mas por heresia – ela dizia ouvir a voz de Deus, afinal. E mesmo assim não foi condenada pela Igreja, mas por um grupo de clérigos ingleses muito ligados aos interesses ingleses. Mas para quem assiste o anime fica parecendo que a Igreja Romana foi lá e matou cruel e friamente a Joana D’Arc acusando-a de ser uma bruxa. Coisas assim, que não são exclusivas do anime Junketsu no Maria (é quase uma parte da cultura contemporânea falar mal da religião, do cristianismo e da Igreja Católica) incomodam os cristãos e católicos tanto quanto Maria se sente incomodada por ser punida quando ela acredita e sabe que não está fazendo nada errado. Eu não sou católico então nada me incomoda, eu trato tudo como “liberdade artística”, mas sem dúvida entendo quem se incomoda. E como já disse, isso não é exclusivo desse anime. Imagino que falte pouco para “Escárnio contra a Igreja Católica” se tornar esporte olímpico. Entenda, reflita, e tome cuidado antes de repetir coisas que lê ou ouve por aí como se fossem verdades. Você pode estar acusando alguém sem ter razão, e isso é ofensivo e preconceituoso.
Para não me extender demais sobre o tema, vou apenas listar alguns preconceitos comuns contra a Igreja Católica, que já foram ou poderão vir a ser abordados nesse anime e que você já deve ter ouvido em algum lugar: 1) A Igreja Católica não perseguia bruxas. No geral, claro, praticamente tudo o que eu disser aqui sempre terá exceções. Enfim, os grandes surtos de caça às bruxas surgiram expontaneamente em eventos de histeria coletiva (como o famoso e historicamente recente caso de Salem, nos EUA) ou por iniciativa da nobreza ou outras autoridades civis, ou por iniciativa de igrejas protestantes. O Malleus Maleficarum, provavelmente o livro mais importante da história para a identificação de bruxas, foi escrito por inquisidores católicos mas foi recusado pela Igreja, que o considerou herético e até mesmo o inscreveu em sua lista de obras proibidas. Foi fartamente utilizado pelos reformadores e por autoridades civis. A bem da verdade, a Igreja Católica tinha uma restrição de ordem filosófica com relação ao tema da bruxaria: admitir a existência da bruxaria e de bruxas seria o mesmo que admitir a existência de outra força sobrenatural além de Deus. Em várias ocasiões a Igreja abriu processo de inquisição contra quem acusava alguém de bruxaria, pela heresia de supôr a existência de outro poder além de Deus, ao invés da pessoa acusada. Caças às bruxas eram em geral desencorajadas e condenadas pela Igreja. 2) A Inquisição matou muito menos do que você provavelmente imagina, e seu julgamento, para a época, era muito mais sofisticado e, digamos, “justo” que qualquer julgamento de autoridades civis, que quase sempre se resumiam a julgamentos e condenações sumárias à pena de morte. Também a inquisição não se voltou contra bruxas, mas principalmente contra hereges e falsos convertidos. Em sete séculos (do 12 ao 19) estima-se que 3 mil pessoas tenham sido mortas, de 150 mil julgadas. Não é o caso de defender o assassinato aqui, mas é importante notar o quão pequenos esses números são, especialmente para a época. Entre ser preso pela inquisição ou ser preso por qualquer nobre local ou governo, a chance de alguém ser torturado ou morto no segundo caso era incrivelmente maior. Mesmo assim não vemos pessoas criticarem os atuais estados europeus herdeiros dessa história hedionda tanto quanto se critica a Igreja Católica herdeira da inquisição. Há muito mais que eu poderia dizer, mas me dou conta que esse parágrafo já ficou monstruosamente grande. Espero que não tenha sido muito massante e que tenha servido para aprender um pouquinho mais, o que é sempre bom.
O último tema de relevo desse texto é a referência às religiões celtas, através do aparecimento do próprio Cernuno ao final do episódio. Não há registro escrito ou mesmo memória oral passada até os dias de hoje que diga quem exatamente foi Cernuno, mas acredita-se que ele fosse um deus ligado à criação ou à fertilidade nas religiões celtas. Um detalhe que eu não sei se foi proposital ou não é que, como eu já disse, hoje em dia não se sabe mais que deus era esse (mesmo seu nome é uma invenção posterior) e o que ele representava, e no anime ele se apresenta como algo indefinido, que não é nem pessoa nem coisa, e que não tem nome. Enfim, é só um detalhe talvez inconsequente mas que achei interessante da caracterização dada ao deus no anime. Na tradição wicca contemporânea seu sucessor é o Cornudo (ou Cernuno mesmo, em algumas vertentes), que representa papel central no neopaganismo. Sem dúvida que ele apareceu no anime como representante da própria religião pagã celta, provavelmente como seu mais importante deus. O equivalente ao deus único cristão. Como na cultura popular contemporânea as bruxas herdaram muita bagagem cultural desse paganismo, eu já esperava que no caso de Junketsu no Maria não fosse diferente. Uma dúvida que fica no ar, dado que as palavras de Cernuno, embora menos duras que as de Miguel, basicamente disseram a mesma coisa, é se Cernuno é um deus qualquer, pagão talvez, ou se em Junketsu no Maria ele é o próprio deus único cristão (isso irritaria muito os cristãos, e de novo, eu entendo, mas isso seria um desenvolvimento muito interessante!). Já apareceram valquírias, a chance desse anime ter um panteão divino sincrético é grande.