Nesta seção de Zona de Atrito (que também pode ser chamada de episódio), trataremos de um gênero bastante comum, que alguns não veem com bons olhos, sendo que muitas vezes recebe o certificado de “chato”, com o argumento básico de que é constituído por animes nos quais nada acontece. Esse gênero é o slice of life, ou fatia de vida. O slice of life, como o nome já evidencia, é um gênero que tem como foco o cotidiano. Ou seja, acompanha a vida – dramas e peripécias – de uma personagem, um grupo de amigos/amigas ou de uma comunidade. O slice of life pode se sustentar (ou tentar) sozinho como gênero ou trabalhar ao lado de outros, de estirpes distintas, como o drama, a comédia e mesmo a magia. Em foco, teremos os animes Non Non Biyori (slice of life, comédia e vida escolar) e Flying Witch (slice of life e magia), que têm como local eleito para suas “narrativas” o interior, possuem meninas como protagonistas e, certa medida, são odes a uma passagem de tempo em que prevalece o bucólico, e as relações humanas, a natureza e a memória (principalmente a que construímos para eternizar uma fase ou um encontro) são regidas pelo equilíbrio entre ação e contemplação.

Slice of life, comédia e vida escolar. Adaptação do mangá seinen escrito por Atto, Non Non Biyori (duas temporadas – 2013 e 2015) tem roteiro de Reiko Yoshida (de Aria, The Animation [2005] e K-On!! [2010]) e direção de Shinya Kawamo (de Kokoro Connect [2012]). Em duas temporadas, Non Non Biyori tem sua “trama” desenvolvida em Asahigaoka, que tem uma escola onde alunos de classes diferentes (do nosso fundamental ao ensino médio) estudam na mesma sala e dividem a mesma professora. Esse lugar longínquo e com “nada” para se fazer (sendo a natureza e uma loja de doces, que raramente tem clientes, as grandes atrações), recebe Hotaru Ichijou, uma aluna transferida de Tóquio, que forma um forte vínculo de amizade com as irmãs Komari e Natsumi Koshigaya e a pequena Renge Miyauchi.

As protagonistas de “Non Non Biyori”

Slice of life e a magia. Flying Witch, de 2016, é uma anime que tem como protagonista uma bruxa e suas experiências no interior do Japão. Com 12 episódios, Flying Witch tem direção de Katsushi Sakurabi (que dirigiu alguns episódios de Shoujo Kakumei Utena [1997] e comandou Lostorage Incited WIXOSS [2016]) e roteiro de Deko Akao (de Noragami Aragoto, de 2015), adaptado do mangá de Chihiro Ishizuka. O anime acompanha Makoto Kowata, de 15 anos, que se muda para o município de Aomori, localizado na região de Tohoku, que é especial para as bruxas, devido à natureza e ser um lugar que favorece à magia. Makoto é recebida por parentes de segundo grau. Das relações que constitui, as mais sólidas são com os primos Kei e Chinatsu Kuramoto, além da jovem Nao Ishiwatari.

Toda a doçura da bruxinha Makoto.

Non Non Biyori e Flying Witch encaram essa vida comum com nada demais acontecendo, que, na verdade, trazem experiências, fabricação de memórias, aprendizado sobre viver em comunidade e a confrontação entre os modos de sentir o tempo que passa (sentido do tempo), se mais vagaroso ou acelerado, apático ou intenso.

Se o grau de iluminação altera nossa percepção do tempo, sendo que uma iluminação mais fraca encurta o intervalo entre o tempo (Espaço, Tempo e Medicina, de Larry Dossel, Editora Cultrix, 1999), na natureza, é provável que o sentido de tempo seja expansivo, por isso que a contemplação de espaços mais vastos e arborizados trazem a sensação de que seguimos o ritmo natural do ciclo da vida.

Escritores, poetas e cineastas exploraram e exploram com ótimos resultados o cotidiano e a natureza, relações bem marcadas nos animes em questão. Um dos maiores escritores japonês, Yasunari Kawabata, autor dos romances O Som da Montanha (1949) e A Casa das Belas Adormecidas (1961) e Nobel de literatura em 1968, trouxe em suas obras a apreciação à natureza e um olhar apurado para o cotidiano. Kawabata chegou a expressar o descontentamento por atribuírem aos seus escritos a reverberação do vazio, sendo que a sua literatura reflete um universo espiritual no qual comunicação, transcendência dos obstáculos e movimento interligam todas as coisas. O cineasta Yasujiro Ozu também explorou o cotidiano e o dito nada que está repleto de acontecimentos e sentimentos. Em filmes como Pai e Filha (1949) e A Rotina Tem Seu Encanto (1962) o dia a dia é contado em uma narrativa que valoriza o silêncio, gestos e o imaginário, isto é, no lugar da agitação da cidade, a ação relatada é rarefeita, morna (outros exemplos podem ser encontrados na filmografia do italiano Michelangelo Antonioni e no cinema realizado no Irã).

O cotidiano em Non Non Biyori e Flying Witch não pode ser dissociado da natureza e do tempo. Principalmente, pelas duas obras – ainda que não tenham metas a se alcançar – tratarem de descobertas a respeito de um novo lugar, de um outro ambiente. Não são um clássico enredo de interior versus capital. Em nenhum dos animes encontra-se uma visão depreciativa dos grandes centros. E nem uma exaltação exagerada de um local distante e intocado pela “podridão” da urbanidade.

Non Non Biyori tem como protagonistas quatro meninas em idades diferentes. Hotaru Ichijou é a forasteira, vindo de Tóquio. Ela está na quinta série. Hotoru se encanta por Asahigaoka, pelo que o Japão rural tem a oferecer. Pelos seus olhos (reforçando que as histórias ou fragmentos de histórias não têm apenas Hotoru como centro, mas também as irmãs Koshigaya e Renge. Além delas, Kaede Kagayama, conhecida como Loja de Doces), um cotidiano mais simples surge, seja na contemplação da natureza, no aprendizado sobre o que esse universo esconde como riqueza – para preparo de alimentos, como tempero, ou lugares para se divertir e extasiar-se com os fenômenos naturais. O modo como Hotoru enxerga o novo mundo em que está inserida, acompanha o amadurecimento das meninas, as memórias afetivas que vinculam essas existências (um exemplo é o episódio que revela que Loja de Doces foi babá de Renge, e o quanto elas são ligadas, ainda que Kaede tente não demonstrar o seu imenso carinho pela criança).

As duas temporadas de Non Non Biyori se passam no período de um ano em que Hotoru está em Asahigaoka. A temporada dois, Repeat, traz os dias não mostrados na primeira edição do anime. O que amplia o desenvolvimento das personagens, seja em episódios focado em uma delas ou em grupo. E essa é umas das principais qualidades do anime: as suas personagens. Destacando Renge (uma rouba-cenas), Natsumi e Kaede, vulgo Loja de Doces. Non Non Biyori é um slice of life agradável, engraçado (como nos momentos de dúvida de Renge sobre Asahigaoka ser uma cidade do interior) e silencioso, que tem o mérito de envolver sem apelar para clichês, fan service e ser um seinen (ou shoujo, já que seu enredo é bem abrangente e tem atrações para o público feminino) em que se destacam o amadurecimento e humor de suas protagonistas e lida com o tempo de modo sazonal (trazendo cada estação do ano e como afetam os ânimos e a diversão).

A Loja de Doces e o bebê Renge.

Flying Witch também tem como elemento o olhar de fora que se torna um olhar de dentro com o passar do tempo. A bruxa Makoto Kowata chega a Aomori para um período de aprendizagem e treinamento. Só que em vez de grandes conflitos e confrontos de magia, Flying Witch investe em descobertas e estranhamentos vivenciados de modo tranquilo. A família não se assusta ou contesta o poder de Makoto. Apenas a pequena Chinatsu (outra rouba-cenas), no início, sente-se perplexa com o sobrenatural agindo em torno dela. Aliás, o sobrenatural na história é introduzido e mostrado muito natural, como parte do cotidiano, da rotina que passa a ser estabelecida com a chegada de Makoto e as aparições de sua irmã mais velha, Akane (melhor personagem). Assim como em Non Non Biyori, Flying Witch esforça-se para que as relações travadas entre cada personalidade do anime seja autêntica, no que o anime é bem-sucedido.

Cada episódio traz algo novo sobre o que o ambiente natural tem a proporcionar, seja na alimentação, na cura de enfermidades ou alergias e no que concerne à magia. Por isso um fragmento desse cotidiano que mostre Makoto na aula de culinária não se difere muito de um evento como a de uma baleia voadora que passa pelo vilarejo, pois há uma naturalidade na apresentação desse universo. Uma personagem geralmente discriminada – as fogueiras da Inquisição estão aí para comprovar o medo e o ódio relacionados a uma visão de mundo não condizente com a hegemônica, a bruxa, em Flying Witch, é o diferente que nem precisa reorganizar a rotina de uma localidade para ser aceita (com um leve humor, como na cena em que Makoto presenteia Nao com uma mandrágora). Em última instância, o anime fala de como o essencial pode ser manifestado perfeitamente pela simplicidade, ainda que seja algo extraordinário como a magia.

Chinatsu quer ser uma bruxa.

Recuperando o que Kawabata expressa sobre sua literatura, que a ideia do nada e do vazio – para o entendimento ocidental – esconde um universo que contém acontecimentos, mensagens e deslocamentos que revelam a exuberância do cotidiano (algo intrínseco ao conhecimento e modo de vida orientais) e de como o banal e a rotina podem, sim, dar a se descobrir experiências significativas, Non Non Biyori e Flying Witch são slice of life que trazem mais coisas que o gênero normalmente permite ver. Seja a aceitação do diferente, de uma bruxa que rompe estereótipos, ou de um olhar encantado de uma menina que conhece o interior, superando a armadilha do sofrimento da adaptação a um novo lar.

  1. Excelente resenha…O que falar de “slice of life”? Bem, historicamente pelo que sei (de leituras há muito tempo mais ou menos esquecidas e não quero fazer aqui TCC que não é o lugar para isso) era que os animes estavam ficando meio safadinhos com toneladas de fan service e violência (muita violência), como era uma indústria de “respeito”, parte do “soft power” japônes, “otoridades” de lá acharam que não iria ficar bem para um produto cartão de visita de uma cultura sofisticada ser confundido com peitinhos e bumbuns e sabe-se lá mais o que….O que estou falando é o que me lembro de um artigo de um site americano ainda feito em HTML, muito bem escrito e com datas e referências, mas que não consigo mais localizar…Quem quiser contribuir com mais material fique a vontade…

    Mas tenho a percepção que o “slice of life”, não que seja “popular” entre os fãs de anime, mas de que é um, digamos, “primo pobre” ou que o pessoal que gosta na sua grande maioria (posso estar errado) é mais de fantasia (e não há nenhum demérito nisso, que fique claro). No meu caso, com o passar dos anos, passei da fantasia (gostava de mechas, super herois, etc…etc…), e como dito brilhantemente na resenha, para a contemplação da vida cotidiana e suas preciosidades.

    Fora, que é no “slice of life” tem um campo vastíssimo para colocar questões sociais vide “Welcome to NHK” e “Watamote” só para ficar em dois…E para mim é isso que o torna exuberante.

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Esse artigo que você citou parece muito interessante, não lembra de nada dele? Algum nome (de autor, site, etc), algum argumento, alguma citação…?

      • Prezado, li esse artigo lá pelo final dos anos 90 inicio 2000 acho que nem google tinha …Infelizmente, tento e tento,mas não vem nada…Mas deve ter uma miriáde de trabalho academico interessante pela internet…

  2. Mas se ajuda o livro do Robin E. Brenner de 2007 “Understanding manga and anime” (infelizmente não sei se tem tradução em português) é excelente e um bom começo.

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