Adaptação do mangá homônimo de Tomiyaki Kagisora, em seu oitavo volume, serializado pela revista Gangan Joker, Happy Sugar Life traduz de maneira precisa uma das mais conhecidas definições sobre o horror, o de que o gênero “se faz acompanhar de um sentimento de obscura incerteza em relação ao mal que tanto teme”. A eloquente afirmação é de Ann Radcliffe, escritora inglesa, que é uma das pioneiras do romance gótico, que tem como principais obras Os Mistérios do Castelo de Udolfo, de 1794, e Os Italianos, de 1797. Passados 200 anos, a série anime do estreante estúdio Ezόla, com direção de Keizou Kusakawa (Inukami! [2006]) e Nobuyoshi Nagayama (My Girlfriend is Shobitch [2017]) e roteiro de Touko Machida (Lucky Star [2007] e Wake Up, Girls! [2014]), surge para nos relembrar o quanto à dúvida e à ambiguidade podem ser capazes de conduzir um mistério e nos entregar o estrato mais assustador do horror: um cotidiano apavorante devido a traumas, à violência e um senso distorcido da realidade.

Happy Sugar Life é um drama/horror psicológico incômodo e perturbador. E também possui uma premissa polêmica. Equilibrando-se entre os dois gêneros, a série acompanha a jovem Satou Matsuzaka, uma estudante do ensino médio (ela tem 16 ou 17 anos), que tem um histórico de abusos psicológicos na infância, promovidos por uma tia masoquista e sua visão deformada sobre o amor. Satou cresce desejando conhecer esse sentimento e por isso, junto com sua amiga Shoko Hida, acumula relacionamentos com garotos que não conseguem despertar nela a mínima consideração ou entusiasmo. No fim do processo, a jovem permanece vazia. Um dia, Satou cruza com a menina Shio Koube, de 6 a 8 anos, que faz nascer sensações não experimentadas antes, logo compreendidas como amor. Happy Sugar Life trata da relação entre Satou e Shio e dos atos praticados pela garota para manter junto de si a sua amada.

A vida açucarada feliz de uma yandere lolicon: um horror psicológico devastador.

Apesar de sua proposição, tendo uma yandere lolicon, Happy Sugar Life evita a sexualização de suas protagonistas (ainda que se tenha momentos íntimos como banhos) e que o sentimento de Satou se manifeste fisicamente (há apenas um breve beijo entre elas). Ainda que o seu declarado amor seja o motor movente da adolescente, a série tem consciência de que a afeição e emoção que ela sente não são normais. O objetivo é o que Satou está disposta a fazer para não perder a sua vida açucarada feliz. Desse modo, o horror – e o drama associado as nossas angústias, loucuras e temores – expõe as fraturas de uma sociedade corrompida por perversões, transtornos de conduta e violência.

O quarto do crime. Sim, Satou é uma assassina, e só se tornará pior com o tempo.

O que temos são desvios, pulsões e traumas, sejam promovidos por adultos, sejam originados por eles. Satou perdeu os pais em tenra idade e ao ir morar com a tia, ela cresce em um ambiente em que o amor é descrito das mais diversas formas, mesmo que machuque fisicamente. A tia de Satou aceita todos os tipos de amor e as suas manifestações. Ela tem transtorno de personalidade masoquista. A infância de Satou não é nada saudável. Em resistência ao amor ensinado pela tia, ela procura por si mesma descobrir o que é e o que se sente quando se está tomado por essa espécie de afeto. A sua busca termina em Shio, uma criança que perdeu a memória devido ao trauma do abandono familiar.

Satou, que tem uma psique conturbada (ela pode ser descrita como uma psicopata) e quer descobrir o sentido do amor, percebe em Shio a docilidade ausente em sua vida. É como amor à primeira vista. O sentimento que ela tem por Shio, apesar da maneira como o descreve, é egoísta e obsessivo. Mesmo os seus sacrifícios guardam a intenção de ser iluminada e tranquilizada pela inocência irradiada pela criança.

Inicialmente, não se sabe se Satou sequestrou Shio. Contudo, a relação entre as duas é harmoniosa, de proteção mútua e um modo de sufocar o desespero.

A verdade a libertará: Shoko e Taiyo e a revelação de um mundo sombrio.

E para manter essa sensação de conforto e o afeto que as conectam, Satou passa a revelar sua faceta sombria. No trato social, ela é meiga e solícita, encantando as pessoas. Mas quando algo ameaça a sua relação com Shio, a jovem se transforma, tornando-se perigosa e capaz de atos atrozes. É peculiar a forma como funciona a moralidade de Satou, dividida em doce e amarga, tendo como símbolo o pote de doces dado por sua tia. Aquilo que a agrada mantém a existência em estado plácido, já quando há ruptura, e ela encara a fealdade humana ou o risco de perder Shio, tudo se torna amargo.

Shoko declara sua amizade a Satou. Seu esforço a leva a um caminho sem volta.

Já Shio Kobe não tem memória de sua vida anterior ao encontro com Satou. Entretanto, fragmentos a atormentam, que logo revelam um cenário de abusos físicos e violência psicológica de um pai alcoólatra em relação à esposa, Yuuna, e seus dois filhos. O pai é mostrado como um ser tomado pela escuridão e de silhueta monstruosa. Uma representação eficaz da hediondez. A ações direcionadas à família são abomináveis, com torturas sistemáticas contra Asahi e espancamentos e insultos promovidos contra a esposa.

Yuuna foge com Shio e a ligação entre elas se rompe pelo medo do ciclo da violência. Um gesto bruto e o monstro triunfa. A separação de mãe e filha é uma das cenas mais tristes do anime.

A tia de Satou realiza desejos perturbadores, mas também sabe provocá-los.

Nesse ambiente, retrato da insanidade humana, a perda da inocência é resultado das falhas em preservá-la. Shio é protegida e a cruel realidade de sua família lhe é alheia, o que favorece seu apego a Satou e a formação de uma consciência longe dos laços familiares.

Assim como Satou, Shio tem uma particularidade. Ela enxerga o coração das pessoas como se fosse uma jarra. A da mãe estava prestes a se partir, e de Satou estava vazia quando se encontram. Shio é uma personagem controversa, pois, no começo, a conhecemos pelo olhar de Satou, sempre ingênua e servindo de tábua de salvação para a garota. Porém quando sua memória vem à tona e ela sente a necessidade de se autoafirmar, mostra-se um tanto madura demais para a idade, decidindo tomar as rédeas de sua vida.

Outras personagens cruzam o caminho de Satou, configurando-se como potencial ameaça a sua vida açucarada feliz. No que concerne à trama, algumas delas são subaproveitadas ou exageradas, sendo um dos pontos criticáveis do anime. Por exemplo, Taiyo Mitsuboshi, um jovem que é abusado sexualmente pela sua chefe, uma predadora que sente necessidade de atenção. Sentindo-se sujo pelo acontecido, Taiyo, para se “purificar”, desenvolve uma estranha obsessão por Shio, que acredita ser o anjo que o livrará de sua “impureza”. Mitsuboshi é uma vítima que se refugia em uma imagem de inocência, porém ao fazer isso, o rapaz, pelas suas expressões e pensamentos, aproxima-se da pedofilia, pois há nele desejos que o tornam perigoso para Shio. Taiyo, algumas vezes, desperta pena, noutras, repulsa, e sua excitação quando imagina ou está na presença da menina Kobe criam contornos poucos autênticos. Taiyo assim como Kitaumekawa-sensei – um assediador, molestador e masoquista homem casado, que nutre uma obsessão por Satou – são personagens que contribuem na apresentação do retrato do submundo emocional humano, que preferimos ignorar, mas resvalam na caricatura e em um excesso de sordidez pouco consistente.

A fúria de Satou: o primeiro assassinato de uma yandere.

Quanto a tia de Satou, que ganha relevância na reta final da série, além de ser a principal responsável pelos caracteres psicológicos da sobrinha, é uma mistura de fragilidade e obstinação. Ela não hesita em defender sua ideia sobre o amor e nem em colocá-la em prática. É uma personagem até certo tempo misteriosa, mas presa a sua própria realidade.

Asahi e Shoko formam a dupla que caminha pela via do equilíbrio mental, ainda que cada um deles tenha seus conflitos internos. Asahi passa o inferno com o pai e o desaparecimento de Shio (ele cola cartazes com a foto dela incessantemente) faz brotar um único desejo: reunir novamente a família. Porém, o autocontrole e a sensatez do garoto sofrem abalos durante a sua procura. Uma busca frenética que o leva a Shoko, que o acolhe e tenta insuflar esperança nele. Já Shoko é a melhor amiga de Satou. Mas a relação começa a se degringolar quando o ambiente familiar de Satou revela-se pesado demais para a adolescente. Satou dispensa a amiga diante do vacilo dela. A situação piora quando Shoko insiste em se reaproximar, mas as suspeitas sobre Satou são fortes para simplesmente serem ignoradas.

Asahi e Shoko, um romance. Só que não!

Shoko é a sanidade em um programa em que o distúrbio é a regra. Ela é como o olhar atordoado do público a descobrir algo sombrio. A partir da evolução da jovem na série, temos a cena mais aterradora de 2018, talvez dos últimos tempos em animes.

Em um verdadeiro painel de complexidade mental, Satou atrai os piores tipos ao mesmo tempo que faz de tudo para manter o seu segredo. A garota toma todas as precauções possíveis, porém o pesadelo cedo ou tarde surge, precipitando a tragédia anunciada. Satou, no fundo, sabe que sua condição não é normal, mas seu apego a Shio a faz correr todos os perigos. É interessante que a transição de seu sentimento, isto é, livre do egoísmo, é descoberto apenas nos últimos episódios.

Algo que Happy Sugar Life não permite, e esse é outro de seus aspectos negativos, é que haja um conflito sério entre Satou e Shio. Temos um passeio noturno da criança, um ato que obriga Satou a sair de sua zona de conforto, e um grito de revolta, que logo é apaziguado por Shio. Se explorasse os curtos-circuitos na relação, as protagonistas poderiam experimentar muito mais emoções, e a própria Satou se tornar o seu maior obstáculo para a obtenção da vida açucarada feliz.

Tecnicamente há vários triunfos a se apontar em Happy Sugar Life, a começar pelo modo como Satou vê o mundo: na sua vida com Shio, os tons de cores podem ser fortes e alegres, e também suaves e transmitir relaxamento. As emoções subjetivas da protagonista são fundamentais para entender a composição cromática de Happy Sugar Life. Já o exterior ao apartamento, predominam os tons acinzentados, sombras e cores frias. Na cena mais terrível do anime, as cores vermelha e rosa tornam surreal a brutalidade inesperada. O design de som é outro destaque. Admirável e potente, gera tensão, intensifica os medos ou nos fornece elementos para entender o estado de espírito das personagens, como quando Shio deixa o apartamento pela primeira vez para procurar Satou. A noite produz pesadelos, o ruído de uma cidade e suas perturbações.

Os votos de casamento e a felicidade para sempre: a vida tem outro plano, porém mais doentio.

Happy Sugar Life é uma anime sombrio e distorcido. As suas protagonistas carregam dores que o vínculo entre elas busca aplacar. Mas o que há de saudável em uma obsessão? É amor o que Satou sente? São questões que surgem ao longo da narrativa perturbadora, que passa por Shio trancafiada no apartamento, por estar alheia aos crimes de Satou, por acreditarmos que a criança foi sequestrada e pode estar sofrendo de síndrome de Estocolmo.

No entanto, entre elas há um afeto genuíno, e Satou faz de tudo para evitar qualquer dano a Shio. A ferida aberta na criança pelo abandono e o egoísmo e aa friez de Satou, forjados em um lar no qual o amor é expiação e vício convertidos em prazer, conduzem esse “trem descarrilado” à tragédia.

Shio ameaça a própria vida: tudo para ficar com Satou.

Happy Sugar Life nos lega o horror do cotidiano (com alguns retratos exagerados), de uma realidade de seres moralmente deformados, emocionalmente quebrados, traumatizados, desvirtuados pela depravação de adultos que deveriam zelar pela segurança daqueles que precisam de sua proteção. E a série é o horror psicológico por excelência, pois que é estranha, chocante e imprevisível, recordando-nos que as nossas vidas podem conter os acontecimentos mais assustadores ou devastadores.

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