Bom dia!

Recuperar a perna ou a pele é uma coisa, mas recuperar os sentidos está em outro nível completamente diferente. Sem dúvida ambos te tornam mais humano, mas é com os sentidos que você se sente humano.

No episódio anterior Hyakkimaru recuperou o tato, em suas várias formas: toque, calor, dor. Ao final desse, ele terá recuperado a audição. Como o Vinicius disse no Café com Anime do episódio anterior, mais fraquezas ele terá quanto mais humano se tornar. Nesse sentido, e isso fui eu quem disse, sua busca é necessariamente trágica.

Hyakkimaru aproveitou bastante seu tato recém-recuperado nesse episódio. Logo no começo, ele fica muito tempo embaixo de chuva, apenas para sentir as gotas caindo e escorrendo por seu corpo, e por consequência sentindo o frio de ter o corpo encharcado.

Mais tarde, quando lutou contra Tanosuke, sentiu pela primeira vez na vida uma dor por ter se ferido em combate após sofrer um leve corte no rosto. Será que também sentiu medo em algum momento?

A maior parte do episódio, contudo, é dedicada a Tanosuke e sua história como samurai que foi possuído por uma espada amaldiçoada e se tornou um assassino errante. A espada, aliás, era Nihiru, um dos 12 demônios que devoraram Hyakkimaru.

 

Ele diz que está obedecendo a vontade da espada, mas está mesmo?

 

Tanosuke é retratado de forma ambígua. Está ele possuído, sendo apenas um vassalo dos desígnios de Nihiru, como antes era apenas um vassalo de seu senhor? Ou será que em algum momento ele escolheu ou aceitou aquele caminho?

Se a minha pergunta parece estranha, tente abstrair a situação. Tanosuke era um soldado, e como tal, tem o dever de obedecer, mesmo quando as ordens que recebe se chocam contra seu senso de moral. Quantas pessoas não quebrariam após seguidos atos que eles próprios consideram imorais, mas que levaram à cabo por estarem apenas obedecendo ordens?

A pergunta é retórica, porque isso com efeito acontece com soldados profissionais e não profissionais desde sempre. É por isso que em guerras se busca desumanizar o inimigo para que pareça mais aceitável ou mesmo desejável que se o elimine.

No caso de Tanosuke, vemos que sua transformação não ocorreu em um momento desses. Essa era foi cruel demais, demoníaca demais, se quiser, para que os senhores da guerra se preocupassem com isso. Só o que havia era dever de um lado e desejo de poder de outro.

Assistimos no episódio passado o Jukai quebrar e tentar o suicídio por não suportar mais participar das atrocidades que o exército de que fazia parte cometia. Eles enfrentavam rebeldes e massacravam todos, deixando seus corpos expostos. Matavam mulheres e faziam crianças chorar.

Dessa vez pareceu ainda pior: não eram rebeldes que Tanosuke foi ordenado a matar. Eram os arquitetos e construtores do castelo de seu mestre. Para todos os efeitos, aliados. Mas, para não correr o “risco” de que alguém que conhecia a planta baixa de sua fortaleza o traísse, mesmo sem nenhum sinal de que isso poderia acontecer, decidiu matá-lo. Quão perverso isso soa? Se já assistiu o episódio, sabe que eu não estou conseguindo colocar em palavras toda a malícia dessa cena.

 

Tanosuke hesita em matar o arquiteto

 

Foi aí que a Tanosuke foi oferecida Nihiru. Ele matou a muito custo e depois de muita hesitação o arquiteto, mas depois estava algo entre enfurecido e frenético. O símbolo da transformação final foi a desfeita de seu chonmage (o penteado samurai).

Então retomo a pergunta: ele estava apenas sendo controlado pela espada? Soldados, policiais e outros profissionais em situações extremas como essa se traumatizam. Podem carregar problemas psicológicos para o resto da vida, podem inclusive se tornar violentos. Como Tanosuke.

Durante a guerra, o soldado diz para si mesmo que está só obedecendo ordens. Isso mantém sua sanidade, mas só até certo ponto. A cada ato que ele considera imoral que ele comete, uma rachadura se forma em sua personalidade. E eventualmente ela pode se espatifar.

Culpar um “demônio” é bastante conveniente, nessa circunstância. Veja bem, não estou de forma alguma afirmando que Nihiru não existisse ou que ele não fosse capaz de controlar pessoas. Claramente era, vimos isso com Dororo. Mas no caso desse anime acredito que vale a pena tentar enxergar além do óbvio. Não apenas o que Tanosuke e Nihiru são, mas o que eles representam.

 

Hyakkimaru luta para valer contra Tanosuke

 

Eles de fato se tornaram um só. Derrotar Tanosuke sem quebrar Nihiru, apenas o separando da espada, não foi suficiente. Tanosuke caiu de uma ribanceira alta, mas sobreviveu basicamente sem arranhões. E Nihiru retornou para ele.

Tanosuke disse com todas as letras para Hyakkimaru que precisava matar para derrotá-lo. E matar foi o que Hyakkimaru fez. Tanosuke morreu e Nihiru voltou a ser uma espada enferrujada, e agora partida. O “demônio” e o demônio estavam mortos.

Hyakkimaru recuperou sua audição e a primeira coisa que escutou foi o choro inconsolável de Osushi, a irmã do assassino. Ela só tinha Tanosuke no mundo, o esperou por tanto tempo que mesmo ele tendo se tornado um assassino, e ela tendo aprendido isso, não pôde se desapegar.

O que o herói fez foi o certo, mas na era em que vive isso quase não faz diferença. Provocar sofrimento e sentir isso é a sua maldição, que provavelmente será tão maior quanto mais humano ele se tornar.

 

Hyakkimaru escuta a chuva e o choro de Osushi

 

  1. O que dizer deste quarto episódio de Dororo, ele para mim foi excelente, teve um ritmo um pouco mais apressado, ainda assim não tenho nada a apontar.

    Logo no começo do episódio percebi que a história iria ser triste, não só pela tonalidade das cores, como na mulher que tentou avisar o Hyakkimaru para este sair da chuva e até o samurai do começo . Quando o Dororo olha bem para a mulher que tentou avisar o Hyakkimaru e lhe diz que a mesma não é uma mulher da plebe, me fez questionar ainda mais o tipo de vida o Dororo teve, uma criança de 8 anos normal, não saberia uma coisa dessas.

    O samurai que apareceu antes da abertura, naquele momento de execução de inocentes, já dava pena dele, nem dá para imaginar o quão imoral seria para o Tanosuke fazer uma coisa daquelas (a cena em que ele se curva e pede para não executar os operários, lembrou-me imenso uma cena semelhante no filme de Mukou Hadan).
    A espada que o senhor sem escrúpulos deu ao Tanosuke me fez lembrar da espada maldita Muramasa, só que nesta é um espírito que a possuí e enlouquece quem a use, já a Nihiru é uma espada demoníaca que tem como base vampirismo.
    O senhor do Tanosuke representa tão bem as mentalidades dos senhores da guerra na época do anime, todos loucos e desconfiados, ordenar matar os construtores do seu castelo é cruel demais e até mesmo imoral, tal ordem tem uma malícia sem limite e o forçar de um jovem samurai a fazê-lo é pior ainda.
    Quando o senhor joga para o chão a Nihiru, já pensava que tal parte ia acabar mal, doeu ver o Tanosuke se forçar a matar o chefe de obras, foram necessários vários golpes para decapitar o mesmo, até a Nihiru estar saciada com o sangue e ficar com o gume afiado. Tal como referiste, quando o penteado do Tanosuke se desfez foi a demonstração final que ele estava sob o efeito da espada demoníaca.
    Respondendo à tua excelente questão, quando o Tanosuke desfere o golpe final no seu senhor, ele já não estava na posse das suas faculdades mentais, ele tinha se transformado numa casca vazia que só servia como recipiente para alimentar a Nihiru.
    Se viste a segunda temporada de Golden Kamuy, teve um episódio onde o protagonista fala sobre a sua experiência na guerra, e ele disse algo muito interessante “quando matava os inimigos, pensava neles como monstros, seres malignos, só assim para seguir em frente sem traumas”, este tipo de pensamento era bem comum nas guerras do século XX. Pode parecer estranho, mas os distúrbios vindo do stress pós traumático, só foram reconhecidos como problema médico nos anos 60 do século XX, antes disso o soldado que viesse “quebrado” da guerra era visto como fraco e muitos casos de PST e distúrbios de personalidade devido aos traumas de guerra eram escondidos pelas próprias famílias dos soldados afectados.

    Quando o Tanosuke diz para o Hyakkimaru que este teria que o matar para acabar com a Nihiru só conseguia pensar o quão mais pesado e triste este anime ainda se pode tornar. Quando o Hyakkimaru matou o Tanosuke foi bem triste para mim, era necessário derrotar o mal, o herói ai esteve bem, mas e o sofrimento da Osushi e logo no momento que o Hyakkimaru recupera a audição, o primeiro som que ouve é o choro de sofrimento da Osushi que acabara de perder o irmão, resta imaginar a onda de sofrimento que irá afectar o Hyakkimaru à medida que ele se vá tornando humano.

    Por fim, tenho que elogiar a forma como anime tem feito os flashbacks, no episódio 3 o flashback foi excelente, neste episódio 4 também foi bom, a forma como em pouco tempo mostraram como era a vida da Osushi com o seu irmão.
    Tenho que elogiar também, a excelência dos cenários e do vestuário, o estúdio Mappa não desilude.

    Como sempre, mais um excelente artigo Fábio.

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Olá Kondou, tudo certinho?

      Acho que todas as histórias de Dororo até agora foram tristes, não é? 😜 Ok, entendo seu ponto, estou só sendo chato.

      Sobre o Dororo reconhecer que os modos da Osushi não eram os de uma plebeia, bom, acredito que não seja tão difícil assim, né? Qualquer um que não pareça xucro deve ter tido uma criação melhor. Em sociedades estratificadas, com desigualdade rampante e praticamente nenhuma educação ou cultura disponível para as castas mais baixas, é bem fácil notar quem é mais ou menos privilegiado. Em todo caso, a história do Dororo é importante, provavelmente o último grande segredo do anime ainda não revelado, estou curioso de todo jeito.

      O senhor do Tanosuke parece apenas seguir o padrão dos demais do anime, né? O anime começa com Daigo Kagemitsu vendendo o próprio filho para os demônios, afinal. Já viu a abertura do anime antigo? Cantada pelo Dororo, ele está basicamente chamando os samurais de estúpidos teimosos com sede de sangue. O tom abertamente anti-guerra vem desde o material original.

      E aí vem a coisa sobre a guerra e a perda de todos as referências morais: Tanosuke estava mesmo sob controle de Nihiru? Ele foi controlado por uma entidade sobrenatural, ou teve seu espírito quebrado por pessoas de carne e osso e se tornou um louco psicopata? Para Nihiru estaria bom de qualquer um dos dois jeitos, note. Com ou sem demônios, Tanosuke é tão somente uma cria desgraçada de seu tempo.

      Sua comparação com o que o Sugimoto disse sobre a guerra em Golden Kamuy (e, de verdade, o que vemos na personalidade e comportamento de vários personagens importantes naquela história) é na mosca. Golden Kamuy não é apenas anti-guerra, mas esse é um de seus elementos, sim. E é bom ver, em tempos de Gate e tantos outros animes que glorificam a guerra e as forças militares japonesas, que ainda hoje existam autores com essa sensibilidade. Derrotar dragões e massacrar exércitos é muito legal, as cenas de combate de Gate são de fazer brilhar os olhos, mas é a morte do Tanosuke e o diálogo sobre a guerra e figos entre Sugimoto e Asirpa que nos faz refletir e nos leva às lágrimas.

      Hyakkimaru também nasceu nessa época infernal, e seu corpo esquartejado é a prova física disso, então muito mais sofrimento está reservado para ele, não tenhamos dúvidas.

      Por enquanto são apenas 4 episódios, mas já me arrisco a dizer que estamos assistindo ao melhor anime de 2019.

      Obrigado pela visita e pelo comentário!

  2. A abertura do anime antigo, acho-a excelente em vários níveis (em especial a música). Li recentemente que o próprio Osamu Tezuka era anti-guerra, parece algo comum nas gentes da geração dele (não era fácil nascer ou viver no Japão durante e pós guerra Segunda Guerra Mundial).

    Não podia concordar mais contigo no que escreveste sobre Gate, eu gostei desse anime (mesmo tendo Imperialismo nele). As lutas de Gate eram muito boas, lá matar dezenas de milhares de soldados do lado inimigo não era nada e matar dragões era super divertido, mas nenhuma dessas cenas teve o mesmo impacto em mim, como a conversa entre o Sugimoto e a Asirpa sobre a guerra e as coisas cruéis que acontecem nela e a morte do Tanosuke.

    Começo a achar, que o Hyakkimaru mesmo nascendo numa época infernal, ter tido o corpo mutilado por demónios, ele é a “semente” boa que vingou do seu pai e mãe (nem sei como a mãe do Hyakkimaru ainda respeita o Daigo).

    Não tenhas dúvida, se Dororo 2019 continuar excepcional como tem sido, ele será o melhor anime deste ano.

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