Evil or Live – Uma prisão para dependentes virtuais
Evil or Live é um caso não tão incomum de anime que se paga na execução, não na proposta; apesar de interessante. Na sociedade contemporânea na qual vivemos o vício em internet, em estar sempre conectado, pode muito bem ser caracterizado como uma enfermidade e é exatamente o tratamento dela que a obra aborda.
Não de um modo saudável, mas em uma escola que mais parece uma prisão da qual os internos, adolescentes levados a reabilitação pelos pais, buscam fugir a todo custo, tendo em vista seus próprios interesses. Na obra acompanhamos Hibiki, um jovem que chegou a vislumbrar o fundo do poço com seu vício, mas nessa “prisão” se vê envolvido em mais do que poderia imaginar.
Li Xiaonan é o título do web manhua – quadrinho de origem chinesa – que inspirou o anime. Não sei muito sobre ele, tanto é que provavelmente não conheceria a série se ela não tivesse sido dublada – para japonês, pois a priori é uma produção chinesa –, e exibida no Crunchyroll.
O estúdio responsável é o Haoliners, que também animou Hitori no Shita, Gin no Guardian, Centaur no Nayami, To Be Hero, Enmusubi no Youko-chan, entre outros; e não deve ser estranho a quem acompanha essa “ascensão” da animação chinesa nos últimos anos.
Enfim, como a maioria das produções do estúdio, a animação não é um primor, mas no geral possui uma boa trilha sonora e é bem dirigida. O que “pega” mesmo é o roteiro, que comete muitos erros bobos, apesar da premissa ser muito interessante, afinal, quantos animes sobre viciados em internet que passam por um “tratamento” existem?
Aliás, esse tratamento de choque ofertado aos garotos é o que define o tom do anime; o de uma doentia prisão de horrores.
O protagonista da história se chama Hibiki e nada mais adequado que ele ser o exemplo bem basicão de adolescente viciado em internet, um garoto que passa horas em frente ao computador e, por isso, passa a negligenciar os estudos e a família.
Não sabendo o que fazer com o garoto, sua mãe o põe em um instituto de reeducação de elite no qual a vida se assemelha mais a de um preso que a de doente, afinal, os internos sofrem castigos físicos e psicológicos, e não há qualquer tratamento para a doença, não havendo também acompanhamento psicológico nem a aplicação de medicação adequada – não sei que medicação seria, mas creio que exista – para tratar do vício virtual como uma doença de fato.
É claro que esse ambiente anormalmente inóspito esconderia ainda mais problemas e é ao conhecer Shin que Hibiki se envolve em uma trama de poder dentro da prisão, tendo que se tornar o cachorro de um colega que deveria estar nas mesmas condições que ele, mas possui uma influência pitoresca.
Não bastasse isso, o protagonista reencontra uma antiga paixão – a tenaz Shiori – e aquilo que havia se tornado seu inferno astral passa a ser uma oportunidade para o seu amadurecimento como pessoa. É, ele demora a enxergar isso e faz muita besteira até ser capaz de aprender com os próprios erros, mas o que são adolescentes senão criaturas falhas e rebeldes que só aprendem apanhando da vida, não é mesmo?
Enquanto a trama vai se desenrolando novos personagens vão ganhando espaço e são aprofundados, já o Hibiki é muitas vezes posto contra a parede e precisa dar um jeito de sair de situações que às vezes até nem são culpa dele. Apesar de que ele quer fugir e há outros personagens nessa mesma situação; o que acabou tirando o foco do anime no vício, o passando da sobrevivência, a fuga pura e simples.
É, Evil or Live acabou não aproveitando sua proposta focando na causa, mas sim nas consequências do confinamento, nas reações a ele. Ainda assim, acho que é um anime que vale a pena ver. Só aviso, o que faz valer a pena dar uma chance ao anime não é sua história, mas as idas e vindas do protagonista, além do aprofundamento de ambos os lados; dos pacientes” e “cuidadores”.
As relações de poder vão sendo subvertidas pelo Hibiki ao passo em que ele vai aprendendo com as mancadas que dá. Ele passa a não confiar mais no Xin e entende que para que algo mude para ele é necessário que ele mude a si. É bom ver como o protagonista passa a tentar usar mais o cérebro e é motivado pela raiva sim, mas não só por isso.
Ele quer ajudar a Shiori, garota que tem o background dramático que prova que nem todo viciado em internet é assim apenas pelo lazer, e com o tempo é capaz até de ganhar sua confiança. A garota tem uma “aversão” a homens que rende uma das cenas mais estranhas e engraçadas do anime, além de evitar algo que seria incômodo de ver em tela.
Mas felizmente Evil or Live não é uma comédia romântica nem uma trama disfuncional adolescente – ou é, mas é em outro sentido –, e sim uma obra que se apoia em mistérios de um lado e reviravoltas do outro. E eu acho que isso combina muito bem com a situação na qual os personagens se encontram.
É como se na trama não existissem mocinhos ou vilões definidos, apenas pessoas imperfeitas como as pessoas de fato são. Não que todos os personagens e suas reações sejam verossímeis, mas não é tão estranho se enxergar um pouco nos personagens. Não precisa ser viciado em internet para isso.
Eu sei que você, caro(a) leitor(a), já passou pela adolescência e vai ou deve estar passando por essa fase, e sei também que o mundo virtual deve fazer parte do seu dia a dia – ver anime e ler sobre os animes que assiste já é uma prova –, assim como é para bilhões de pessoas no mundo todo – sejam elas reféns do virtual ou não –, então duvido que o enredo desse anime não desperte ao menos um pouco do seu interesse.
Algum dia todos nós já fomos ou seremos um pouco como o Hibiki, alguém que precisou levar aquela rasteira da vida para mudar o modo que via e lidava com o mundo ao seu redor. Alguém que precisou tomar consciência dos grilhões que o prendiam para só assim se libertar deles, sendo capaz de mudar para alguém melhor – ainda que esse “eu” continue sendo imperfeito.
Tirando a mudança do protagonista, que pode ser vista do início até o fim do anime, seu background não é dos mais interessantes. Personagens como o Shin, a Shiori, a diretora da instituição, o guarda principal e as outras garotas que querem fugir – é, eu esqueci o nome desses últimos, pois faz mais de um ano que vi o anime, desculpa – têm motivos mais interessantes para estar ali, ou querer sair dali; o que é bom, pois não faz a trama girar apenas em torno de um ou dois personagens. Quem é apresentado e aprofundado acaba tendo alguma participação, alguma relevância, para o desfecho.
Por fim, rola muita coisa e o status quo dentro do instituto é quebrado com o vazamento da situação que os internos passavam ali e da fuga de alguns deles. Hibiki foi vital para isso ter acontecido, mas o Shin também, tanto é que o final do anime é entre os dois e ele não só realça a relação deles ali, mas também seus desenvolvimentos enquanto personagens.
O final é melancólico, poético, mas também é bem bonito e creio que deu um encerramento satisfatório para o anime. Evil or Live não é o tipo de anime que se destaca em qualquer aspecto, mas que pode agradar ao público mais paciente e menos exigente que quer assistir a uma jornada de amadurecimento em meio as “neuras” do mundo virtual.