Nesse quarto filme/OVA de Kara no Kyoukai, nos deparamos com o impacto. Na verdade, quem se depara com o impacto é Shiki, que aparentemente foi atropelada, o que tudo indica, por livre e espontânea vontade, mas vamos descobrir, para salvar Mikiya, a pessoa que estava prestar a matar. Tá, parando pra pensar isso é bem estranho, ainda mais devido a fato de que faz todo sentido no anime. Mas vamos lá.

Após esse evento, Shiki fica entre a vida e a morte, e novamente, ela tanto morre, quanto vive, ao mesmo tempo. Fisicamente ela sobrevive, entra em coma, e pelos próximos dois anos permanece desacordada, habitando a fronteira de si mesma. Entretanto, Shiki morre, parte de Shiki morre, e não é uma morte simbólica, é uma morte real.

 

 

Shiki, nossa protagonista, como já sabemos a essa altura do campeonato, é uma pessoa extremamente singular, uma pessoa que é composta por duas almas, por duas consciências e duas identidades, é uma pessoa dupla, em todos os sentidos, mas ainda continua sendo uma pessoa física, pois ambas as Shikis, por mais que sejam cindidas por completo no que tange a sua alteridade, ainda assim compartilham o mesmo corpo, e ainda mais, o controlam em sincronia desde sempre.

Por mais que elas possam trocar de lugar, ou pudessem, ao deixar uma vir à tona e se expressar, a outra, que cedia o controle, estava sempre desperta, sempre presente, ou seja, elas estavam ao lado uma da outra e compartilhavam absolutamente tudo, provavelmente até conseguiam saber o que uma ou outra sentia e pensava, o que implica em uma intimidade plena, que nós, que utilizamos máscaras e hábitos sociais de dissuasão, nem sequer conseguimos imaginar. Estar ao lado de uma pessoa a qual se conhece a alma, esse é o grau de proximidade que as duas Shikis compartilhavam.

 

 

Não à toa, para além de se conhecerem e estarem tão conectadas, sabemos que elas se agrediram, se negavam, principalmente a Shiki um, que no decorrer dos outros OVAs, o segundo em especial, está mais presente e na superfície, podemos assim dizer. A Shiki um, como bem relata a Shiki dois, direcionou a ela o sentimento de ódio, de repúdio, de asco, todas as corrupções de caráter e todos os sentimentos negativos que nós possuímos. A Shiki dois foi violentada e agredida, assassinada, no sentido de ser psicologicamente mutilada pela Shiki um. Esse acúmulo de desprezo que lhe foi direcionado, a fez abraçar a única realidade que conhecia, a realidade da destruição e da morte, a fazendo desejar, ou mesmo efetivar, ainda não temos completa certeza, atos contra todos aqueles que foram brutalmente assassinados no segundo OVA. A Shiki dois só conhecia o sofrimento.

 

 

Por outro lado, a Shiki um, devido a essa natureza negativa e destrutiva, por tabela, para além de destruir, ou agredir ao extremo a Shiki dois, destruiu a si mesma. Seu ódio a tornar uma pessoa sentimentalmente apática, insensível ao nível da indiferença em relação ao mundo ou a si mesma. Embora ela seguisse cumprindo as tarefas mecânicas de sua vida e cotidiano, ela estava completamente desconectada de qualquer relação humana, presa em sua própria masmorra de sentimentos opacos e violentos. O mais interessante em tudo isso, é que ambas as Shikis compartilhavam desses sentimentos, e a Shiki um, ao ser opaca e vazia, ao direcionar o seu ódio a Shiki dois, tanto o sentia de volta, ao estar ao lado, dela, como compreendia o sofrimento de sua parceira. É uma simbiose extremamente complexa, onde ela se esvaziou, mas se preencheu pelo conteúdo que uma vez direcionou a Shiki dois, o que resulta, pelo que entendi, em comportamentos distorcidos e desejos de destruição aplicada por parte da Shiki um, que não apenas é uma pessoa que propaga ativamente a destruição, ao ponto de chegar a indiferença, quanto recebe como reflexo a influência da destruição, forçando a sua indiferença em um desejo homicida.

 

 

E finalmente voltando ao OVA de agora, que é ilustrado pelo subtítulo, o templo vazio, que significa exatamente o que se tornou a Shiki um quando a Shiki dois, que não sabemos exatamente o porquê, venho a morrer, ou a desaparecer, dentro da Shiki um.

Shiki um está sozinha, uma solidão abissal que nunca sentiu antes, um sentimento extremamente desalentador. A compreensão de vida e morte que ela presencia é absurda, pois ela mesmo morreu, ela mesmo está sozinha em si mesma, completamente só. Ela vê efetivado aquilo que direcionou para Shiki dois, a morte, e se depara com o resultado disso, o suicídio de si mesma, Shiki um morre, não fisicamente, mas em dor, em desamparo, pois perdeu aquilo que lhe garantia identidade e existência, o outro. A experiência de vazio que isso desencadeia é indescritível. Não sabemos o porque a Shiki dois morreu, qual é o seu motivo real, mas ao que tudo indica, foi um sacrifício benevolente, um ato de amor, um ato de generosidade para com a sua parceira, a Shiki um. Àquela que só conhecia a morte, se deixou morrer.

 

 

Teorizo que muito do que aqui se apresenta, é uma consequência direta de Mikiya, que representa e é, a figura do carinho, do amor e do cuidado, que não apenas aceitou Shiki, como a amou, ambas, de modo incondicional. Mikiya infectou Shiki, lhe deu e garantiu um sentimento de afeto e pertencimento, aquecendo seu coração gélido e brutalizado. Shiki dois, que sabia ser o assassinato em essência, entrou em estado de choque, Shiki um, a insensível, ficou paralisada frente a esse sentimento. Imagino, e teorizo, que esse cenário é o que levou, em grande parte, a Shiki dois a se “matar”, pois ela percebe que caso não se matasse, mataria a pessoa que a amava, mataria a pessoa mais importante para a sua companheira de corpo, a Shiki um, e destruiria completamente a chance dela despertar o seu coração. A morte de Shiki é um renascimento, é um despertar, e paralelo a isso, ela desperta e fortalece a sua habilidade familiar, os olhos místicos da morte.

 

 

Talvez o mais interessante nesse OVA, seja exatamente aquilo que ele não diz, mas que uma leitura atenta pode nos revelar, Shiki se transforma no avatar da morte, aquela que pode destruir toda e qualquer forma, ao mesmo tempo, ela se torna no receptáculo da forma, aquela que pode ser preenchida infinitamente por tudo aquilo que destrói ou que sobre ela se direciona. O que isso implica, podemos nos perguntar. Isso implica que Shiki é o avatar da vida. Ela pode dar vida a si mesma, se preencher com o caos da destruição que gera, ou mesmo compreender plenamente o significado e a realidade, satisfazendo assim o vazio pleno de sua existência, da ausência, ela pode viver infinitamente como ninguém mais jamais poderá, oferecendo abrigo a destruição, ao significado e a realidade, e reconstruindo, em si mesma, a forma de um mundo que se dissolve ao toque de seus dedos; isso lhe garante a intensidade mais potente de vida que se possa imaginar, e ela está ao lado da pessoa que pode guiar essa vida em amor, Mikiya. A pergunta é, o que será que acontecerá com a relação de ambos? Não sei.

 

 

Organizando a prosa acima para elencar a moral da história do que podemos entender em relação a Shiki. Quando Shiki nasce, ela habita o mesmo corpo que outra Shiki, elas competem e parasitam a existência uma da outra. A Shiki em se torna a alfa, ou a dominante, que em presença de sua companheira, ela a nega intensamente. Shiki dois, por outro lado, fica passiva, e pouco consegue fazer frente a essa situação, ela coexiste com a Shiki um, e acaba internalizando e compreendendo a situação, participando e tomando para si o papel que Shiki um acaba lhe cedendo, de ser o ódio encarnado, ou a morte e sede de destruição. Shiki um, por outro lado, por estar no mesmo corpo e junto a Shiki dois, perde sua potência individual e se torna apática, distante, e mesmo influenciada pela Shiki dois, a qual emana a negatividade que ela, a Shiki um, lhe cedeu. O ponto trágico dessa relação é quando Shiki um se percebe sem a Shiki dois, sua companheira que carregava o fardo de amparar a sua própria existência, a existência da Shiki um. Quando a Shiki dois “morre”, a Shiki um não tem mais alguém que lhe garanta o reflexo de sua existência, pois só conseguimos ser nós mesmos, se estivermos em relação com o outro. Quando esse outro não está mais ali, o vazio é extremo, a solidão, implacável. Nem mesmo os sentimentos negativos fazem mais sentido, não se efetivam, e nem mesmo existe espaço para sentimentos positivos, ou qualquer sentimento. Shiki um se depara com a compreensão plena do que significa morte, e isso, ainda em vida. Para piorar, ela começa a habitar a fronteira da forma, da desintegração, do ponto falho que a tudo aniquila, esse é, em essência, o próprio poder que herda de sua família. Agora ela tem que dominar esse poder, e reconstruir a si mesma do zero, aprender a lidar e a sentir novamente, aprender a viver, renascer. Essa é, em resumo, a jornada existencial de nossa protagonista até então.

 

 

O artigo se estendeu e a conversa se centrou muito em um aprofundamento das facetas de Shiki, indico, para maior aprofundamento de outros elementos desse OVA incrível, a resenha que fiz em áudio visual, que está anexada no começo do artigo, lá debato outras facetas desse OVA, como o poder da Shiki, e falo também sobre a Touko. Peço desculpas por não debater esses elementos aqui, mas a ideia é que o artigo seja curto, e não se estenda demais, e por outro lado, como viram, a trama oferece muito pano pra manga para teorizar e elaborar, mais do que um artigo curto pode abarcar.

Até a próxima pessoal, nos vemos no quinto OVA de Kara no Kyoukai.

 

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