As escolhas que fazemos na vida nos levam a conhecer várias pessoas. Para onde você vai, que estilo de vida quer ter, o que estudar, com o que trabalhar, hobbies, cada uma dessas escolhas, e cada combinação de diferentes escolhas mais a aleatoriedade do destino, leva você a conhecer essas pessoas mas não aquelas. Você irá se aproximar mais de algumas pessoas, ser mais íntimo, ter maior amizade, tudo isso mais ou menos de acordo com as escolhas que você faz.

E tem aquelas pessoas que você não escolhe e que mesmo assim são íntimas, não importa o quão diferentes vocês possam ser: a sua família. Se não é possível escolher quem vai ser sua família, seus pais e irmãos, é verdade que pelo menos é possível escolher se afastar delas, da mesma forma que se pode escolher se afastar de qualquer outra pessoa. Mesmo assim continuarão sendo a sua família. Por mais que o rompimento seja genuíno e que se pretenda honestamente definitivo, seu pai sempre será seu pai.

A Dorothy saiu a cara da mãe, não é? Melhor assim, vendo a cara de seu pai, hehe. Inclusive Dorothy é o nome de sua mãe, não o seu próprio – ela se chama Daisy. A escolha do nome falso pode talvez ter sido aleatória, mas acho mais provável que tenha sido proposital e revele o profundo laço que ela ainda mantém com sua família. Que era uma família horrível (seu pai tornou-se alcoólatra após perder a mão em um acidente de trabalho, era violento com ela e sua mãe abandonou a família), mas era a família dela. A única família dela. Ela não quis se separar para sempre de seu pai mas quis a fortuna que a guerra irrompesse no país no exato dia em que fugiu de casa por não aguentar mais os abusos.

Uma decisão por impulso que ela jamais teve oportunidade de reconsiderar, refletir. Como a dela, milhares de outras famílias certamente foram separadas e entre elas devem haver famílias de todos os tipos e gostos: famílias não funcionais, como a da Dorothy, e também famílias amáveis. Pobres, ricos e remendados. Honestos e vagabundos. Jovens e velhos, bonitos e feios, a guerra não faz distinção: é igualmente destrutiva com todos que acontecem de se envolver com ela ou de apenas estar no lugar errado, na hora errada. Esse episódio foi triste? O mundo é triste. O nosso mundo, eu quero dizer.

O carinho pela filha parece ser a única coisa boa que restou nele depois de todos esses anos

Não vou me estender demais no assunto, nem pretendo dar qualquer comentário político em um momento tão tóxico quanto o atual, isso é apenas um breve comentário. Uma contextualização do episódio seis de Princess Principal no mundo real onde eu e você vivemos. Que tal começar pela crise humanitária mais famosa da atualidade, os imigrantes tentando entrar na Europa? Se todo o processo de imigração em si já não fosse traumático e perigoso o suficiente, pense que muitos deles estão fazendo essa travessia toda deixando família para trás. Pessoas que eles talvez nunca mais irão ver. Não é fácil, não é uma decisão fácil, nem para quem parte e nem para quem fica. Mais próximo ao Japão há o caso das Coreias. Já são décadas de separação e centenas de milhares de familiares separados. Estão todos velhos hoje, muitos já morreram sem nunca rever seus parentes, e bem, não vou me alongar mais sobre esse assunto, apenas leia essa notícia, de 2014.

Ange e Charlotte têm sorte. Depois de dez anos conseguiram se reencontrar e estão convivendo diariamente desde então. Mas para cada caso como o delas, quantos como o da Dorothy existem? Ange planejou tudo para que pudesse resolver o problema de forma definitiva para si e Charlotte, e ela teve sucesso apesar do grande risco que correu. Mas Charlotte, a princesa, quarta na linha de sucessão, que também sofreu esses dez anos de separação, não ficou à toa esse tempo todo. Ela não estudou táticas de espionagem ou combate, como seguir pessoas na rua sem ser detectada ou como abrir fechaduras. Mas estudou avidamente tudo o que pôde estudar sobre a sua nação, tudo o que ela precisa saber para um dia governá-la e para um dia reunir, de forma definitiva, todas essas famílias desamparadas.

A pequena pilha de livros que a princesa já leu e encheu de cuidadosas marcações

Eu a achava uma idealista boba quando ela contou isso pela primeira vez, mas agora meu respeito por ela cresceu, vendo o tamanho da pilha de livros (todos cheios de marcadores!) que ela vem estudando (e esses devem ser só os recentes), seu entendimento da tragédia humanitária que se abate sobre o país, e o tamanho de sua determinação. Ela sabe o que quer, o quanto quer, o tamanho da empreitada que está se propondo a realizar e as dificuldades que precisará superar. E ela teve a oportunidade de resolver o problema para si mesma, com o reencontro com Ange, mas isso não foi bom o bastante para Charlotte. Ela ainda é uma garota, mas penso que já está preparada para ser uma rainha, uma grande rainha.

Quanto à Dorothy, aquele era mesmo um pai horrível mas era o pai que ela tinha. Apesar de todos os seus incontáveis e imperdoáveis defeitos ela ainda o amava. E ele sem sombra de dúvida amava a filha apesar da loucura há muito ter levado embora o melhor dele. E porque os dois se amavam demais, ele morreu. Dorothy o mandou para a morte quando entregou o código. A vida dele andava uma merda, mais do que de costuma ultimamente por causa de suas dívidas, mas se ele tivesse apenas desistido e abandonado aquela missão talvez tivesse sido poupado. Mas Dorothy o amava e o ajudou a completar a missão. E ele a amava e isso o compeliu a ser imprudente, tentando extorquir uma agente de inteligência (e serviços sujos) do Estado. Talvez ela pretendesse matá-lo de qualquer forma? Não descarto essa hipótese. Mas ao mesmo tempo se ele tinha uma única chance de não morrer essa chance seria terminar o serviço, pegar sua parte em silêncio e de cabeça baixa, e viver calado pro resto da vida. Mas isso não seria suficiente para poder mimar sua filha querida que ele reencontrou depois de tantos anos e que o ajudou a completar essa missão. Ele pediu mais. Ele pediu demais.

Certamente depois desse episódio a Dorothy não tem o mais remoto motivo para trair a Comunidade em favor do Reino, mas isso não significa que estará tudo ok com ela e sua permanência na missão. Como ela irá reagir à morte do pai? Ela deu uma boa demonstração no final desse episódio do quanto é forte em combate e implacável quando sob intensas emoções. Ela irá perseguir vingança? Ela irá se tornar uma assassina, ao invés de espiã? Se ela não conseguir guardar no fundo do coração quaisquer emoções fortes que venha a ter, ela pode se tornar uma ameaça para a missão. Estão em jogo os destinos de milhares de famílias.

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