A.I.C.O. -Incarnation- – Eu e meu outro eu
A.I.C.O. -Incarnation- é mais um anime original exclusivo da Netflix. Ele tem uma qualidade de produção que não deixa a desejar aos seus “irmãos” – Devilman e B –, 12 episódios e um final fechado para um bom sci-fi com drama, que até poderia ter sido melhor, mas apresentou uma história executada de forma satisfatória com apenas algumas ressalvas. Que venha a Erupção!
Antes de falar da obra vou deixar a sinopse que traduzi e adaptei do Myanimelist aqui para vocês:
No Japão do ano de 2035, um incidente conhecido como “Erupção” foi causado por uma pesquisa de vida artificial. Uma certa inteligência artificial chamada “Matéria” erodiu o Desfiladeiro de Kurobe, entrando na cidade de pesquisa, que foi chamada de “Última Esperança da Humanidade” e isolada pelo Governo. Dois anos mais tarde, Tachibana Aiko, uma garota de 15 anos que perdeu sua família no incidente, soube através de um estudante transferido, chamado Kanzaki Yuuya, a verdade que ela desconhecia sobre um segredo escondido em seu corpo. Ele diz que a chave para resolver esse mistério se encontra no Ponto Primordial, o centro da Erupção. Quando um garoto e uma garota, cujo futuro está atrelado ao da humanidade, se encontram, qual será a nova verdade?
A.I.C.O. é o tipo de anime que funciona muito bem para ser maratonado, pois a história é dinâmica e há real urgência em concluir uma missão. Ao reduzir a área em que a história se passa e o número de personagens, a imersão na trama fica mais fácil e acredito que entendendo isso a Netflix deve estar priorizando animes que fechem bem um arco narrativo em uma temporada – mesmo que eles dêem abertura para uma continuação, como B fez. Outro fator positivo desse tipo de anime é a duração, que segue uma média de tempo um pouco maior que a dos animes para televisão, e quando é preciso dá mais tempo a um episódio mais importante. O anime ainda segue o modelo padrão de abertura e encerramento e até o número de episódios é o mais comum atualmente. Contudo, por pertencer à plataforma da Netflix, demonstra um pouco mais de liberdade no que se refere ao seu formato, o que espero que se torne uma tendência, com ela passando a exibir animes com um número incomum de episódios, tempos de duração diferentes e sem um “apego” tão forte a uma abertura e a um encerramento – como B fez e ficou semelhante a uma série, o que o anime realmente pareceu.
Agora falando da história, o que geralmente é um problema para muitos animes, nesse foi de certa forma um ponto positivo, que é o de aprofundar personagens de forma razoável. A história toda se passa no Japão, mais especificamente em uma região e envolvendo um número limitado de personagens, os quais encarnam bem os seus papeis, sejam de apoio ou de protagonismo, pois não são nem aprofundados demais e nem são tão rasos quando não poderiam ser. E se pensarmos que a obra dispunha de apenas 12 episódios e uma trama central estabelecida do início até o fim não faria sentido investir tempo e recursos em subtramas que pouco ou nada agregariam ao plot principal. A construção dos personagens e de suas personalidades foi feita na medida certa na maioria dos casos, salvo um ou outro personagem que poderia ter tido mais tempo de tela – como o Doutor Kiryu – ou ter sido melhor apresentado – como a hacker ruiva que eu pisquei e já tinha sido enfiada na trama.
A protagonista é a Aiko, e logo que ela conhece o Yuuya a história não perde tempo e já deixa a garota a par da situação na qual ela se encontrava – que seu corpo era feito de células artificiais, etc –, apresentando a necessidade de se reunir uma equipe para seguir em uma missão até o Ponto Primordial a fim de parar a Erupção e salvar a mãe e o irmão da garota – com tudo bancado por um dos pesquisadores envolvidos na pesquisa de vida artificial e que agia por “debaixo dos panos”.
Talvez ela embarcasse nessa arriscada missão só pelo objetivo de parar a Erupção, mas ao arranjar uma forte motivação pessoal para se envolver no plano a importância da operação se eleva e se torna até mais fácil para o telespectador aceitar que a maior parte do anime se resumirá a isso. Há um propósito importante para a protagonista dentro daquele mundo, que só pode ser realizado caso aquele grupo consiga superar todos os obstáculos que terão no caminho até um local específico.
Falando um pouco dos gêneros do anime, um dos fortes dele com certeza não é a ação, pois tem pouquíssimas cenas de ação entre seres humanos e são bem curtas, focando muito mais nas ações dos Infiltradores em parar o avanço da Matéria ativa quando era necessário, o que por mais que causasse tensão em certos momentos geralmente não provocava a empolgação que uma obra de ação normalmente costuma ter. O drama é o que se faz constantemente presente ao longo da obra e é através dele que os personagens principais, Aiko e Yuuya, são desenvolvidos e os seus plot twists são revelados e explorados, conseguindo pegar desprevenidos aos mais desavisados e agradar mesmo aqueles que já previam tais desenrolares. Dá até para dizer que foram clichês, mas por terem tido uma boa execução e terem sido sacados no momento certo não vejo muito o que reclamar não.
Achei que a existência de gente que se infiltrava na área em que se concentrava a Matéria foi um ponto positivo da obra, pois o Japão é conhecido por sua eficiência em produzir contra medidas para desastres naturais e desenvolver novas tecnologias, sendo assim, tanto esses Infiltradores quanto a Guilhotina, as armas e os veículos expressam bem o que é o desenvolvimento tecnológico japonês e como a nação estava lidando com aquela situação de uma forma até que razoável, inclusive enxergando a Matéria como uma “carta na manga”, a fim de ajudar o país na economia e em outros setores. Os interesses da nação foram expressados através da personagem Nanbara, que até foi um pouco simpática e, apesar de ter sido uma força de oposição ao grupo principal em boa parte da obra, aliou seus interesses aos do Kurose quando viu que aquela era a melhor opção para o seu país.
Talvez ela tenha sido nacionalista até demais, mas em um país que consegue balancear um elevado nível de desenvolvimento tecnológico com o respeito e a apreciação às tradições e a identidade de seu povo – algo que não acredito que mudaria facilmente em 20 ou 30 anos –, ter uma personagem que coloca os interesses da nação acima de tudo não me parece algo assim tão estranho ou forçado.
Voltando a Aiko, ela segue nessa jornada com os Infiltradores contratados e outros aliados do Doutor Kurose, sempre seguindo as indicações do Yuuya, que mantém uma atitude muito centrada e um ar misterioso, o que inevitavelmente levanta suspeitas nos Infiltradores ao longo da obra e serve para gerar alguns dos conflitos necessários para criar um sentimento de unidade e de propósitos fortes o suficiente para dar forças para que aquele grupo conseguisse alcançar o objetivo desejado.
Os Infiltradores não são personagens super carismáticos ou marcantes cujos nomes você vai lembrar meses depois de ter visto o anime, contudo, eles são pontualmente aprofundados, mesmo que de forma até bem modesta, dando para o público compreender quem são, como pensam e até perceber alguns características de suas personalidade que justificassem as interações já existentes entre as duplas e as interações que foram criadas entre elas e com os outros integrantes da missão no convívio que se deu no período de mais ou menos uma semana. Semana essa que foi tempo suficiente para que um se apaixonasse pela Aiko, outros dois criassem um laço de camaradagem, todos sofressem com a perda de um dos integrantes da missão, etc. Inclusive, essa perda foi positiva – mesmo que de um personagem secundário pouquíssimo trabalhado e que não fez falta alguma –, pois deu um pouco de “senso de perigo” que faltava à obra e ajudou a fortalecer a união no grupo.
A animação e a trilha sonora foram praticamente impecáveis, no máximo achei um ou outro CG não muito bons, mas nada que incomodou visualmente. A direção foi consistente e o roteiro nem esbanjou e nem pecou em demasia, mas confesso que algumas coisas me incomodaram um pouco, como: a insistência do Infiltrador que estava apaixonado pela Aiko em dizer isso, a desnecessária atitude de “vilão louco e caricato” do Isazu na reta final, a inserção não tão bem-feita da filha dele na trama, a falta de explicação para coisas que poderiam ter sido explicadas – como as circunstâncias da morte do Doutor Yura e como exatamente a Yuzuha se envolveu naquilo tudo, etc. Não que isso tenha estragado a experiência de assistir o anime, mas acredito que ele seria melhor com esses pequenos ajustes e que mesmo com esses e outros problemas foi uma experiência prazerosa com uma mensagem final bem bacana, plot twists bem executados e uma trama capaz de prender a atenção do telespectador e merecer a sua boa vontade – não pedindo mais do que ele poderia dar.
Chegando ao fim da resenha acho imprescindível falar mais um pouco sobre a Aiko e o Yuuya, pois são esses dois personagens que são mais aprofundados, principalmente a Aiko, e conduzem a trama ditando o seu ritmo e a sua qualidade. A Aiko é uma “garota normal” até ser jogada dentro dessa trama que de pouco a pouco vai a colocando sobre um intenso estresse – chegando até a sentir dor física – e revelando coisas sobre ela que ela desconhecia e que com o tempo só vão a afastando do que ela pensava sobre si. É como se um dia ela acordasse e do nada tivesse a vida virada ao avesso.
Por outro lado, o Yuuya sempre pareceu saber muito bem as suas origens e o seu propósito na trama, mais usando as pessoas como bem lhe serviam em um primeiro momento, para de pouco a pouco ir se abrindo e mostrando um pouco de humanidade, um pouco de fragilidade, algo que era importante para caracterizá-lo como um ser humano falho e não só alguém inteligente e suspeito demais. As revelações de que a Aiko não era uma humana normal e sim um ser criado artificialmente que desenvolveu consciência, e que o Yuuya era na verdade o Doutor Yura que teve o cérebro implantado em um corpo artificial, foram muito interessantes, tendo sido feitas na hora certa e juntado várias pontas soltas que foram deixadas ao longo da trama – o Yuuya entender tanto da Matéria, a Aiko estar perdendo a consciência, ele também não ser afetado ao ficar ao ar livre na área em que tinha Matéria, etc. Os plot twists em si não foram algo que eu elogiaria pela criatividade – o ser artificial que achava que era um humano normal e um cérebro ligado a um novo corpo são coisas que vira e mexe aparecem mesmo em histórias de sci-fi –, contudo, volto a repetir, eles foram bem executados e exploraram bem o drama que o anime poderia proporcionar dentro daquelas situações. A.I.C.O se tornou melhor com esses plot twists, pois sem eles seria no máximo razoável – talvez até medíocre.
A Aiko é uma garota normal que ao longo da obra é constantemente sacudida para fora da sua zona de conforto, ela passa por uma forte quebra de identidade, que começou quando descobriu que seu corpo era “falso” e se alongou por toda a trama, ora por não achar que o seu objetivo egoísta valeria o risco da vida dos seus companheiros, ora por se ver envolta em mistérios cada vez maiores sobre o ser humano que ela não tinha mais certeza se era. A Aiko “artificial” é a protagonista desse anime, a “original” também se tornou uma personagem a partir do momento em que foi revelado que era ela que se encontrava no Ponto Primordial, mas não foi trabalhada ao longo da história como a primeira.
Sendo assim, como não considerar essa personagem uma humana digna de empatia e afeição? Ela pode ter sido criada por um “deus em pele humana” e ter sido tratada como um ratinho de laboratório ao longo de sua curta vida, mas nos momentos mais importantes nos quais ela deveria ter tido atitude e mostrado personalidade, ela não retrocedeu e foi capaz de se arriscar para defender seu outro eu e a família dela, aceitar que os amava, assim como a outra Aiko, mas não poderia viver com eles, pois isso afetaria algo que ela perdeu – ou talvez nunca teve direito – e gostaria de recuperar: a sua identidade. Se tivesse continuado com aquela que lhe serviu de modelo ela não passaria de uma sombra, mas ao decidir viver a própria vida ela foi em busca exatamente do que mais lhe faltava, do que mais ela precisava, de algo que a distinguisse da outra e a fizesse se sentir única, a fizesse se sentir um ser humano de verdade, independentemente de ter sido criada artificialmente ou não; ao desejar ser única ela se provou tão humana quanto qualquer outra pessoa.
Antes de concluir só gostaria de fazer mais uma reflexão acerca do final da obra, exatamente da cena em que após trocar de cérebros a Aiko artificial parece que morre, mas depois ressurge com um novo corpo. Okay, você pode até dizer que aquele final foi forçado para ser feliz e em parte eu não discordaria de você, mas, será que a mensagem realmente seria relevante se não fosse assim? A mensagem do anime de que identidade é importante e de que o que define o humano vai muito além dos conceitos que temos hoje é, ao meu ver, muito mais bonita e produtiva do que qualquer outra mensagem que poderia ser passada caso ela tivesse morrido ali e a Aiko original tivesse seguido com a sua vida. Afirmo que histórias clichês com final feliz têm sim uma função reflexiva pungente e devem ser sempre disseminadas, assim como histórias com finais mais “difíceis” têm seu valor e espaço – até mesmo dentro dos animes criados pela Netflix. Espero que o textão não tenha sido cansativo de ler, que tenham curtido o anime e visto algo de valor na mensagem que ele tentou passar, e espero que quem assistiu A.I.C.O. – principalmente aqueles que têm seu “outro eu”, seja ele um irmão gêmeo, uma “alma gêmea” ou um doppelgänger –, consiga construir e celebrar a sua identidade como aquilo que o faz ser quem é, como aquilo que o faz ser um ser humano único.