Vinland Saga – ep 8 e 9 – De Escravos e Guerreiros
Bom dia!
No último domingo, dia 8, não teve episódio novo de Vinland Saga. Ainda bem, senão eu estaria com três episódios atrasados 😛
O oitavo episódio foi bastante importante tematicamente para o anime, com a questão da escravidão e da liberdade, do ponto de vista de diferentes personagens que não obstante pareceram convergir. O nono foi mais ação mesmo, bastante divertido, mas além de apresentar melhor um personagem que já havia aparecido e de dar o tom do que será o próximo arco não avançou muito a história.
A maioria dos personagens citados, bem como lugares e acontecimentos em Vinland Saga, são verídicos, históricos. Não obstante, o autor modifica bastante coisa e cria a sua própria história em cima da história real, conforme acha mais interessante para a sua ficção.
A isso podemos chamar de ficção histórica ou de história alternativa, e embora a diferença entre os dois seja clara (a história alternativa é a história do “e se tivesse acontecido diferente”, o que não é o caso da ficção histórica, que encaixa uma história fictícia dentro da história real), a fronteira entre os dois gêneros é menos óbvia.
É fácil argumentar que, em certa medida, é impossível contar uma ficção histórica sem modificar qualquer detalhe da história real, então a questão é decidir quanta modificação é aceitável. É a mesma discussão que eu já propus em Angolmois, que conta a história de outra invasão sofrida por outra nação insular no extremo oposto da Eurásia, cerca de dois séculos mais tarde.
Vinland Saga tem como pano de fundo a invasão viking à Inglaterra. Em linhas gerais a história é preservada, mas o autor toma tantas liberdades criativas com tantos detalhes que eu me sinto mais confortável classificando o anime como história alternativa. Não que isso tenha importância.
Nesse artigo e nos demais, sempre que for necessário, usarei os nomes traduzidos dos monarcas, por que eu acho mais legal assim. E também porque no fundo mesmo a versão do anime também é uma tradução – uma tradução para o inglês de nomes escandinavos. Então qual a melhor? Não tem uma melhor, mas se você quiser pesquisar as pessoas reais por trás dos personagens começar em português me parece mais interessante.
Outros personagens eu posso ou não usar nomes traduzidos.
Uma curiosidade: a família real dinamarquesa atual é descendente do Rei Sueno I, Barba Bifurcada (Sweyn), aquele velho decrépito que aparece no anime. De fato, por toda a história da Dinamarca o monarca sempre foi da mesma linhagem. Sueno, por sua vez, era neto de Gormo, o Velho, o primeiro rei histórico da Dinamarca.
Assim, a Dinamarca sempre foi governada pela mesma família. Mas a linhagem de Canuto, coroado Canuto II, chamado de O Grande, durou apenas até seu filho. A dinastia se manteria com descendentes de sua irmã, Astride da Dinamarca.
Mais curioso ainda: embora expulsos da Inglaterra, através de casamentos o sangue da família real dinamarquesa entraria na linhagem da família real escocesa e através dela voltaria para o trono inglês quando Jaime VI da Escócia ascendeu como Jaime I da Inglaterra. Eu não sei se a linhagem inglesa se manteve desde então, mas sei que Isabel II, a atual Rainha da Inglaterra, é descendente de um rei dinamarquês do século 19.
Enfim, em Vinland Saga como na vida real, Sueno invadiu, levando Canuto consigo, e Etelredo II (Æthelred – como se pronuncia isso??), o Despreparado, fugiu.
Também em linha com os fatos históricos reais, havia um comandante viking trabalhando para os ingleses em Londres: Thorkell, o Alto. A partir daqui é que as coisas começam a ficar diferentes.
O Thorkell do anime diz que o único grande comandante inglês que conheceu foi Edmundo Braço de Ferro, mas que ele havia morrido. Edmundo era filho de Etelredo, e ele com efeito não seguiu o pai no exílio, mas os fatos que o tornariam notável ocorreriam apenas anos mais tarde do que o ano em que se passa o anime.
Ele não morreu em 1013 ou antes, portanto. Ele foi coroado Edmundo II e lutou contra o exército de Canuto e, mesmo tendo sido eventualmente derrotado, fez tanto que seu valor foi reconhecido e a Inglaterra foi partilhada: Edmundo continuou governando Wessex, enquanto o resto da Inglaterra ficou sob o comando do rei dinamarquês.
Foi um reinado curto, de todo modo, Edmundo morreria meses depois e Canuto voltaria a dominar toda a Inglaterra. Isso foi em 1016. No anime, já mataram o filho antes mesmo de seu pai morrer, mas não deixaram de reconhecer seu valor, então tem isso.
A questão religiosa não foi o motivo por trás dessa guerra, mas a religiosidade e a fé de diversos de seus personagens é objeto de estudo e ajudam a criar um quadro mais completo do que aconteceu na época. O anime já deu alguns sinais nesse sentido, como aquele padre que foi morto pelos mercenários de Askeladd e no episódio 9 a menção aos ensinamentos cristãos de Canuto.
A Escandinávia não havia sido completamente cristianizada ainda na época das invasões vikings, mas sua conversão já havia começado e estava mais avançada do que o anime faz parecer. O próprio Rei Sueno foi batizado (como Otão, em homenagem ao Imperador Romano – germânico). Mas as coisas ficam mais complexas, é claro.
Adão de Bremen, um cronista da época que trabalhava para a Arquidiocese de Hamburgo-Bremen, escreve que Sueno se rebelou contra seu pai (Haroldo I, Dente Azul) contra o cristianismo e pela volta ao paganismo. Sueno de fato se rebelou contra o pai, mas é pouco provável que a religião tenha a ver com isso.
Sueno escalou aliados entre o clericato inglês e construiu igrejas durante o seu reinado, portanto é pouco provável que fosse anti-cristão. Mais ainda, o fato dele ter escolhido alianças com sacerdotes ingleses, ao invés dos alemães, que já estavam na Dinamarca, indica que suas motivações fossem meramente políticas: a Igreja de Bremen fazia parte de um Estado estrangeiro com o qual a Dinamarca mantinha relações tensas.
Vinland Saga, como vimos, escolhe a tese mais simples do paganismo de Sueno, conforme vemos quando ele critica Ragnar por ter tornado o ainda príncipe Canuto “mole” por ter-lhe permitido contato com o cristianismo.
Guerras sem fim e redes de poder e de influência complexas eram a norma então. E com efeito tem sido a norma durante a maior parte da história da humanidade, seja pela inevitável disputa por recursos escassos, seja pela ganância mesquinha dos poderosos.
Nessas circunstâncias, ninguém é plenamente Senhor de Si Mesmo. Todos estamos presos nessa teia de interesses e disputas por poder que chamamos de sociedade. Apenas acontece de que um milênio atrás isso era mais violento e mais descarado do que é hoje.
À rigor, nem mesmo os poderosos gozam da verdadeira liberdade. Bom, hoje em dia talvez alguns gozem, mas não é de hoje que estamos falando. Nem mesmo um rei tinha escapatória. É claro que era muito melhor ser um rei a ser um escravo, assim como era e continua sendo melhor ter dinheiro a não ter, mas o fato é que mesmo reis são, de alguma forma, “escravos” de algo.
Thorfinn é claramente retratado como um escravo de Askeladd. Ele é um guerreiro, não um escravo, e se quisesse ir embora a qualquer momento o assassino de seu pai não o perseguiria, mas mesmo assim o garoto está preso ao chefe viking.
No caso dele, o que o prende é a honra de um guerreiro e o senso de dever de um filho que deseja vingar a morte do pai. Askeladd pode não acorrentá-lo literalmente, mas sempre que pode o lembra de seus grilhões, como quando fica provocando Thorfinn durante o duelo. Como o protagonista poderia esquecer e seguir em frente com toda essa provocação?
Quando uma escrava de verdade o aborda e diz que sente que ele é parecido com ela, Thorfinn nega veementemente. Suas grosserias passaram perto de fazer chacota da condição da pobre mulher. Mesmo assim, no fundo ele sabe que ela está certa.
Foi por isso que ele teve aquela visão de seu pai. Não existem fantasmas, o espírito de Thors não apareceu para o filho, aquilo foi a própria mente de Thorfinn lidando com o assunto. E quando ele conversa com a escrava sobre a terra de Vinland, ele não está tanto tentando dar-lhe esperanças quanto está tentando resgatar a sua própria esperança.
A esperança de que um dia escapará de sua cela e será, enfim, livre.
Acho que não preciso me aprofundar muito no quanto o anime retrata Canuto como alguém também acorrentado ao seu destino, como Thorfinn, preciso?
O mais interessante a essa altura é se perguntar: de que será que Askeladd é um escravo? Quem, como eu, já leu o mangá, sabe que veremos essa resposta. E é um dos clímax mais incríveis de meio de mangá que já li. Aguarde!
Sempre há, óbvio, liberdade na loucura. Faça o que quer, sem se preocupar com absolutamente mais nada ou ninguém. É também uma liberdade auto-destrutiva e por isso mesmo efêmera. A essa altura, quem a enverga em Vinland Saga é Thorkell. Ele só quer lutar contra os mais fortes, nas condições mais adversas possíveis, porque “lutar apenas quando sabe que vai vencer” perdeu a graça.
Aceitando o desafio de um moleque que poderia ter sido facilmente transformado em peneira, Thorkell já perdeu as pontas de alguns dedos. E se continuar nesse caminho a tendência é perder ainda mais.
Em todo caso, tudo considerado, essa parece ser a única liberdade possível.
Exceto, claro, pela liberdade que nos espera na terra de Vinland. Um lugar sem guerras, sem escassez, sem senhores. Um lugar onde todos somos livres. Um lugar que existe ao mesmo tempo em que não existe.
Em Vinland qualquer um pode viver segundo os nobres ideais de Thors: guerreiros não precisam de espadas e ninguém tem inimigos.
Kondou-san
Estou sem palavras, artigo maravilhoso. Valeu a pena a espera.
Tenho que elogiar a tua excelente aula de história neste artigo e elogiar também a tua abordagem sobre a escravidão, um tema que para mim foi o ponto forte do episódio 8 (até colocaste a imagem do tio do Askellad a olhar uma moeda de prata como se estivesse hipnotizado, ele é escravo do vil metal).
Quando vier a parte do passado do Askellad e se for bem feito no anime, será épico.
Por fim, o Thorkell é dos melhores personagens da obra, no anime foi captada sua essência e ainda colocaram um seiyuu que encaixou perfeitamente.
Fábio "Mexicano" Godoy
Olá Kondou, tudo certinho?
Curiosidade (mais uma 😛): a parte mais demorada da pesquisa que fiz para esse artigo foi aquela sobre a linhagem real dinamarquesa. Eu li que ela teria se mantido até os dias de hoje, mas eu precisava confirmar. Então saí pesquisando a linhagem de cada monarca dinamarquês. Eu já havia terminado a pesquisa histórica sobre os eventos retratados no anime.
Acho que minha “aula” ficou longe de ser “excelente”, apenas me limitei a mostrar em que pontos o anime se ancora na realidade e em que pontos diverge dela. Acho isso importante porque algumas pessoas podem consumir a mídia como uma aula, coisa que até certo ponto Vinland Saga é, mas não pode ser tomado a valor de face. É mais complexo do que isso.
Fora que eu não tinha muito o que escrever sobre o episódio 9 e queria escrever muito sobre o 8 😅
No final, acho que escrevi menos sobre o que eu considerava mais importante (a “escravidão” metafórica) do que gostaria. Mas pudera, em qualquer circunstância esse é um tema complexo demais.
Obrigado pela visita e pelo comentário!
Anthoni Vedovato
Ainda naum vi,mas hoje n teve Review dos Episódios do Symphogear XV?
Fábio "Mexicano" Godoy
Olá Anthoni, tudo certinho?
Infelizmente, estou atrasado em tudo, e depois de Carole & Tuesday Symphogear é o anime em que estou mais atrasado. Estou trabalhando para recuperar esse atraso nos próximos dias!
Obrigado pela visita e pelo comentário.
Kondou-san
Sei muito pouco sobre a história geral dos povos nórdicos, dos vikings só sei sobre os barcos que usavam, as armas que usavam, os seus hábitos diários e a sua perícia na arte de moldar o ferro e ouro.
Dai a tua pesquisa parecer uma porta para o conhecimento para mim.
Quando li o capítulo correspondente ao episódio 8 fiquei horas a pensar no que o Askellad disse sobre a escravidão (foi nesse momento que o Askellad passou a ser o segundo personagem que mais gosto na obra).
Obrigado por ter respondido tão rápido.