Bom dia!

A vida em sociedade depende de um equilíbrio delicado entre seus indivíduos, suas necessidades e interesses.

É impossível que todos saiam ganhando sempre. É impossível todos terem o máximo possível de cada interação sempre. Pior do que isso, é impossível evitar que alguns abusem das regras da sociedade ou simplesmente as quebrem para atender suas próprias vontades.

Assim que viver em sociedade é ter certeza que teremos menos do que gostaríamos, provavelmente menos do que seríamos capazes se, tudo o mais constante, tudo nos fosse permitido, e ainda corremos o risco de sermos alvo de transgressores agindo em benefício próprio.

E, no entanto, somos animais sociais. A alternativa, viver isolados, não existe.

Se tudo isso já apresenta dificuldades para nós, humanos, vivendo em nossa sociedade de uma espécie só, imagine quão mais difícil não deve ser pra uma sociedade que envolva múltiplas espécies, especialmente se, como em Beastars, carnívoros e herbívoros tiverem que conviver.

Ainda mais se, como em Beastars, carnívoros forem proibidos de predar.

 

Mais um assassinato

 

Apesar de algumas exceções, sendo o clube de teatro a mais vistosa delas, na vida escolar de Legosi em Cherryton é bastante marcada a separação entre carnívoros e herbívoros, por isso foi uma surpresa para ele quando saiu para a cidade e viu a convivência harmônica e pacífica entre os grupos.

.preconceito; juno, louis

Os problemas de bullying contra carnívoros nas escolas parecem ser rampantes e normalizados, conforme se depreende desse episódio e do que já se sabe.

Um único caso de predação que fez manchetes na cidade foi o suficiente para encruar as relações entre carnívoros e herbívoros em Cherryton.

Colegas herbívoros que estavam jogando com Legosi e seus amigos se sentiram incomodados e abandonaram a mesa imediatamente. Esse tipo de reação é compreensível. Eu entendo porque os carnívoros se sentem mal com ela, mas também compreendo porque os herbívoros não conseguem continuar a partida.

Isso tem a ver com a natureza da discriminação em Beastars. Não há equivalente na nossa sociedade. Imagine se após notícias de um assassinato motivado por preconceito racial pessoas da mesma raça da vítima imediatamente se indispusessem com seus amigos da raça do criminoso. Não faz sentido.

Em Beastars, porém, carnívoros são carnívoros, e, como vimos desde o primeiro episódio, até mesmo o mais gentil deles pode ser dominado por seus instintos de predador. Por isso na sociedade humana esse comportamento não seria aceitável, mas em Beastars, por doloroso que seja para Legosi, é compreensível que os herbívoros se retirem da mesa.

Quero ver se Beastars vai fazer algo particularmente interessante com a questão do preconceito, porque, da forma como está, ela não serve como metáfora para o mundo real e fica parecendo só um dispositivo de enredo utilizado quando convém. Vamos ver.

Retornando, se por um lado é compreensível que herbívoros se indisponham temporariamente e se afastem, evitem os carnívoros, por outro lado o bullying não é compreensível muito menos aceitável.

 

Juno está farta de sofrer bullying

 

Foi nessa circunstância que o anime apresentou Juno, uma loba cinzenta (que é marrom, mas isso existe, ok) do primeiro ano e que também entrou no clube de teatro. Ela já tinha ouvido falar no Legosi, mas ele não a conhecia.

O mais curioso desse caso é que ela foi alvo de outros carnívoros. Mas bem, preconceito se manifesta de formas bem estranhas à primeira vista também.

Fiquei positivamente surpreso com o Legosi. Até o episódio passado ele me parecia tão tímido que seria incapaz de ajudar alguém nessa situação, mas ele foi lá e salvou a Juno. E é lógico que ela, já tendo escutado coisas boas sobre ele e tendo sido salva, já está totalmente interessada por ele.

O que Juno irá pensar quando descobrir que ele gosta de coelhinhas?

Entre as reações incômodas mas compreensíveis e o inaceitável bullying, há uma terceira forma de preconceito, muito mais insidiosa. É negativa, machuca, mas é não só tolerada como aceita como normal: me refiro, claro, ao discurso do Louis.

Nas palavras do cervo, todo carnívoro é, sempre, um assassino em potencial. É preciso exercitar o auto-controle constante. Imagine a pressão psicológica de não apenas escutar isso o tempo todo como acreditar que você é mesmo um assassino em potencial, tendo ou não qualquer impulso instintivo antes, e ficar se policiando vinte e quatro horas por dia.

Não é à toa que Legosi se cansou.

Não foi apenas para introduzir Juno e revelar um pouco mais sobre o preconceito nesse mundo que serviu a notícia sobre o assassinato que abalou Cherryton, porém.

Foi também para dar a desculpa para que apenas carnívoros pudessem sair da escola e mandar Legosi com um grupo deles para fora dela.

Com a escola sob um clima pesado, sem sair dela há mais de ano e sem realmente muitas experiências boas na vida em relação a isso, Legosi não estava exatamente ansioso para esse tour.

O que ele viu no mundo lá fora, o mundo dos adultos, porém, explodiu sua cabeça: carnívoros e herbívoros vivendo em harmonia. Todos pareciam felizes e tranquilos na presença uns dos outros.

 

A cidade tranquila

 

Os carnívoros não eram ameaçadores e os herbívoros não tinham medo ou demonstravam preconceito. Legosi fica excitado.

É através de Aoba, o falcão, que fica claro que o que estamos testemunhando é o deslumbramento de jovens que querem logo se tornar adultos: as aves na cidade podem voar! Aoba tem asas já bem desenvolvidas, ele adoraria voar, mas ai!, apenas adultos podem tirar licença de voo.

Não apenas a vida de adulto parece livre de preocupações como é bem mais excitante, o que mais aqueles garotos poderiam desejar?

É lógico que existe um segredo, porém.

 

Um herbívoro velho vende os próprios dedos na porta do Mercado Negro

 

Os carnívoros adultos comem carne. Não necessariamente todos, provavelmente não o tempo todo, mas em que pese a proibição de predação, há um mercado especializado em vender carne vinda de hospitais e funerárias para isso. É um negócio ilegal, mas é um dos pilares da sociedade.

Uma mentira branca ou hipocrisia?

Legosi fica chocado ao descobrir a verdade, e mais ainda quando seus amigos, tendo a oportunidade, decidem experimentar o gosto da carne também.

Para ele, a existência do Mercado Negro com certeza é prova da hipocrisia da sociedade. Ele não consegue ignorar todo o sofrimento pelo qual ele passou na escola, ou o sofrimento que outros carnívoros, como Juno, passam, enquanto os adultos escolhem uma “solução” tão simples.

Mas será que é simples mesmo?

E quanto da fúria de Legosi não é na verdade raiva contra si mesmo por se lembrar de Haru e de que ele tentou comê-la?

Ele foge correndo para dentro do Mercado Negro, e o cheiro inebriante de carne e sangue o faz salivar e ficar zonzo. Nessa hora ele se lembra do final da última conversa que teve com a coelha.

 

Legosi e Haru, quando a coelha começa a se abrir para ele

 

“Como você me vê?”, perguntou Haru.

Legosi não respondeu na hora, mas ele está apaixonado por ela, a acha linda, fascinante. Mas agora ele está pensando na garota que ele ama, a mesma que ele já tentou devorar, enquanto saliva de desejo de comer toda aquela carne do Mercado Negro. Sobrecarregado, ele colapsa.

Um panda, que se intitula de Vigia do Mercado Negro e de Terapeuta, captura Legosi. Esse é um lugar ilegal. Coisas perigosas devem acontecer nele de vez em quando, afinal.

O panda primeiro interroga Legosi, apenas para descobrir que ele nunca comeu carne. Então ele conta sobre como vários carnívoros, sobrecarregados pelo desejo, matam. Como eles se sentem sobre isso, como se culpam por isso.

Carnívoros que cedem aos instintos, como os assassinos da notícia no começo do episódio.

No fundo, segue o panda, eles são vítimas também. Do ponto de vista do Legosi isso faz muito sentido.

 

Todos os carnívoros devoradores de carne que já passaram pelo Doutor Panda

 

Quero dizer, não duvido que possam existir assassinos de má índole que escolhem o crime por livre e espontânea vontade. Pense em alguém como o Bill, mas que retira os últimos freios. O Bill ainda é cínico o bastante, ou sábio o bastante, para saber qual é o limite. Mas e se ele passar a achar que essa de limite é uma besteira?

Mas também existem aqueles como o Legosi, que são apenas sobrecarregados pelos instintos e perdem o controle das próprias ações. O panda parece acreditar que esses são a maioria.

Um panda é uma boa metáfora para isso: ursos panda podem ser tão fortes quanto ursos pardos, como o Legosi relembra, e eles têm o sistema digestivo idêntico. Um urso panda pode comer carne.

Mas ursos panda não comem carne. Por quê? Em algum momento da história evolutiva do panda o gene que codifica um receptor de sabor específico foi desativado. Os cientistas não sabem se isso foi antes ou depois de pandas pararem de comer carne, mas sabem que eles não sentem o gosto dela, por isso não se sentem atraídos. É simples assim.

Como o panda de Beastars disse, o problema maior é provar o sabor pela primeira vez: quando alguns carnívoros comem carne, não conseguem mais parar. Se torna uma obsessão.

Isso é real também, e está por trás de histórias de animais predadores comedores de gente. Uma vez que experimentam e gostam, querem mais. Tem a ver também com o vício em drogas, conforme pareceu o caso quando o Bill contrabandeou uma dose de sangue para dentro da escola.

Legosi nunca comeu carne, mas quase cedeu à tentação uma vez. O Doutor Panda o alerta, corretamente, que aquilo que Legosi sente por Haru pode ser na verdade uma racionalização por cima do instinto primitivo de devorar a coelha.

 

O doutor alerta Legosi que ele pode estar apenas mascarando seu desejo de predar Haru

 

O lobo tem certeza que não.

Mas será que pode ser isso? No mínimo, Haru tem o direito de saber que ele já tentou atacá-la. Legosi jura que pretende revelar a ela. Esse é o evento pelo qual estou mais ansioso em Beastars.

Será que pode ser mais complexo ainda, e tanto o amor quanto a fome são legítimos e independentes, com um interagindo com o outro?

Pelo menos no fim do dia Legosi teve um pouco de paz ao reencontrar-se com Aoba e descobrir que o falcão ficara de estômago embrulhado ao pensar em comer carne conforme se lembrava de seus amigos herbívoros. O lobo não está sozinho.

 

Aoba e Legosi, quando o falcão admite que não conseguiu comer carne

 

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