Jashin-chan Dropkick – Uma loira-serpente e o peso das contradições humanas
Uma lolita gótica invoca uma demônio, porém não sabe o feitiço para mandá-la de volta. Para retornar ao inferno, essa demônio precisa matar sua invocadora. A premissa remete a um terrir, e é isso que Jashin-chan Dropkick oferece… até certo ponto. O que começa como um slapstick com toques de gore ganha contornos de um slice of life, e ainda que tenha violência gráfica (em exibição comedida) e humor físico, a série centra-se na relação entre suas personagens e seu cotidiano, recorrendo a metalinguagem, quebra da quarta parede e um olhar crítico à sociedade japonesa. Jashin-chan Dropkick não é uma comédia avassaladora, há momentos impagáveis assim como tediosos, mas consegue sustentar o interesse e a diversão ao investir nas interações entre os seres sobrenaturais – anjos e demônios – e Yurine, a loli gótica sádica, que adora coisas fofas.
Jashin-chan Dropkick é a adaptação em anime do web mangá de Yukiwo (serializado desde 2012 na revista Comic Meteor), com produção do estúdio Nomad, dirigida por Hikaru Sato e composição de série de Sato, Kazuyuki Fudeyasu e Momoko Murakami. Com 11 episódios (e um ONA próximo de ser lançado), a comédia faz parte dos animes da temporada de verão/2018.
A história tem como protagonistas Jashin-chan, uma demônio, e Yurine, a sua invocadora, uma lolita gótica fascinada pelo sobrenatural. Como a garota desconhece a forma de reverter a magia, Jashin-chan é obrigada a permanecer na terra e servir a Yurine. O problema é que para se livrar dessa condição, e reencontrar sua antiga morada, o inferno, Jashin-chan, cujo parte superior do corpo é de uma bela jovem loira e a inferior de uma serpente, deve assassinar a sua despótica invocadora.
Os primeiros episódios acompanham Jashin-chan e seus frustrados planos contra Yurine. A demônio elabora armadilhas e golpes para executá-la, mas o fato de ser uma verdadeira sem-noção – pois é atrapalhada e presunçosa – sempre a levam ao fracasso. Como castigo, Yurine revela todo o prazer que sente em torturar e presenciar o sofrimento da loira-serpente. É provável que o poder de Jashin-chan de se regenerar aguçe a sua invocadora a colocar em prática as punições mais brutais, o que provoca danos físicos consideráveis na demônio.
No entanto, com a interação com as outras personagens, a dinâmica da relação Jashin-Yurine aos poucos se modifica e o que indicava ser uma comédia pastelão associada a um splitter (suavizado) começa a se configurar em um slice of life, que não se furta a incorporar elementos do girls club, porém investe na metalinguagem e na crítica social, engendrando uma significativa mudança no que parecia se resumir as tentativas de Jashin-chan a se livrar de Yurine. E ao alcançar um equilíbrio entre seus recursos narrativos, notadamente nos últimos episódios, Jashin-chan Dropkick torna-se um programa que combina satisfatoriamente a evolução de suas protagonistas com esquetes aleatórios. Contudo, mesmo que isso amenize seus defeitos, não os afasta completamente, já que esbarra na pouca profundidade de algumas das personagens (que, apesar de carismáticas, são reféns de estereótipos) e na falta de voltagem cômica de um bom punhado de seus segmentos.
Jashin-chan Dropkick não explica como funciona o seu mundo em que anjos e demônios convivem com seres humanos sem nenhum tipo de conflito ou tensão. Jashin-chan caminha por Akihabara e, mesmo que chame um pouco de atenção, não gera espanto, horror ou qualquer tipo de crise. Além disso, a invocação de Jashin-chan surge apenas no final (um fragmento), porém sem informações de como ela foi dominada por Yurine e o porquê de ela ter invocado justamente a loira-serpente, que não apresenta poderes especiais, a não ser sua capacidade de autorregeneração (que não pode ser transmitida) e seu dropkick ineficaz. A ausência de contextualização é algo a se superar em seus primeiros episódios, até que a lógica interna do anime comece a fazer sentido ou deixe de incomodar.
No que tange às personagens, elas são a força de Jashin-chan Dropkick, a começar pela protagonista. Jashin é irritante, malvada, preguiçosa, soberba etc., isto é, apresenta inúmeras falhas de caráter. Considerando que ela seja uma demônio, é bastante plausível que assim o seja. Entre avanços e regressões em relação a sua personalidade, Jashin é a que tem o melhor desenvolvimento, não estando sujeita permanentemente ao seu estereótipo, ainda que, no final das contas, seja a “saco de pancadas” do anime.
A sua relação com Yurine se modifica conforme o andamento da série. É possível apostar que exista afeto entre elas, ainda mais por Jashin salvá-la no último episódio, quando a garota é abatida por uma doença. Outro ponto é o seu relacionamento com Medusa, uma górgona – uma figura da mitologia grega com cobras no lugar dos cabelos e que tem o poder (na verdade, maldição) de petrificar quem se depara com o seu olhar, que no anime é egípcia e de beleza moe – que anda com uma sacola de papel na cabeça para evitar converter em pedra os humanos. Jashin e Medusa têm um convívio marcado por abusos e exploração por parte de Jashin, que chama a amiga de “seu caixa eletrônico particular”, e domínio sentimental por parte de Medusa, isto é, como a loira-serpente é instável emocionalmente e carente de atenção (nela, há um conflito entre baixa autoestima e arrogância), a górgona surge como seu amparo afetivo e psicológico. Jashin-chan ainda é viciada em pachinko, um jogo de máquina no estilo japonês. E esse vício lhe causa inúmeros problemas, tomado proporções drásticas quando sua dependência afeta sua relação com as amigas.
Já Yurine, apesar do pouco desenvolvimento, tem um comportamento instigante, já que é violenta e tem uma queda por coisas fofas. Ela não é bipolar, mas tem acessos de sadismo contra Jashin-chan, cometendo barbaridades para retaliar a loira-serpente por alguma ação maliciosa ou perversa. Essas características tornam Yurine mais interessante conforme a série progride. Ela funciona como uma espécie de juíza – que julga e aplica a pena – para os malfeitos de Jashin-chan. Como não há outro humano com importância no enredo, excetuando a policial Mei Tachibana, que é presa ao estereótipo da yandere, Yurine funciona como um termômetro moral para as atividades das anjos e das demônios.
Quanto as outras personagens, Medusa e Minos, uma Minotauro ou vaca-demônio, são amigas de infância de Jashin-chan. Elas não apresentam um grande desenvolvimento na série, mas a górgona tem destaque na parceria que forma com Jashin – amizade, talvez um vínculo romântico. Medusa é companheira, gentil e admira os seres humanos. Ela praticamente vive por Jashin-chan e em poucos momentos a contraria, porém quando o faz a loira-serpente mostra a sua fragilidade. A relação entre elas por mais que não possa ser considerada saudável, tem sua dinâmica, e quando juntas, é perceptível o imenso carinho que emana delas.
Minos é a representação de uma demônio adaptada ao modo de vida humano. Ela é uma trabalhadora, gosta de se divertir, beber sua cerveja, comer bem e estar com as amigas. Em seu arquétipo, Minos é a que está contente com o que tem, é a trabalhadora sem grandes ambições e que tem na lida diária um dos seus prazeres.
Nesse sentido, Pekora, a anjo que perdeu a sua auréola, é o inverso de Minos, pois o trabalho para a anjo gera todos os desconfortos produzidos por empregadores que visam apenas o lucro e que a falta de aperfeiçoamento e uma melhor instrução lançam ao subemprego e aos baixos salários. A sua condição a coloca em contato com a generosidade de Yurine e as travessuras de Jashin. Nesse caso, o seu dilema diz respeito à recepção à bondade da garota, que ela considera bruxa e o fato de estar se confraternizando com demônios. O interessante em Pekora é a ampliação do olhar a uma realidade que afeta os países desenvolvidos e que geralmente é ignorada: a exploração do trabalho e o problema da moradia. Sim, Pekora é uma sem-teto (Em 2018, uma série que apresenta esse drama de maneira emocionante, leve e incisiva é Hinamatsuri).
Na miríade de personagens, ainda há Poporon, uma anjo que vem a terra matar Pekora, mas que acaba por ter sua auréola devorada por Jashin-chan. Poporon começa como candidata à vilã, mas depois mostra-se também do grupo das trabalhadoras. Como ela é possui uma beleza angelical (e se aproveita dela), a crítica ao fascínio humano pela beleza e ao lado nocivo da idolatria é realizada. A policial Mei Tachibana é a personagem menos agradável da série, tendo um comportamento excessivamente pegajoso e violento. A sua obsessão por Jashin-chan nada tem a ver com paixão, mas com um senso de colecionadora, tornando curiosidade e encanto em mercadoria. Nela, agudeza que a série demonstra na crítica e observação aos arquétipos apresentados não atinge seu alvo. Mei tem pouco tempo para escapar de sua unidimensionalidade, é ser algo além de uma torturadora que objetifica aquilo que supostamente a fascina.
Ao se consolidar como um slice of life com momentos de violência, Jashin-chan Dropkick frustra quem embarca no duo comédia pastelão-gore, mas assegura o espaço para que seja mais convincente narrativamente o seu exame da sociedade japonesa, apresentando números sobre o desemprego, a condição da mulher no Japão, o problema do fanatismo existente no universo pop etc. Essas considerações e observações são um tanto frouxas inicialmente, entretanto ganham vigor quando as personagens secundárias recebem mais atenção e segmentos para atuar.
Outro ponto relevante é o uso da metalinguagem, com a quebra da quarta parede e Yurine se referindo ao mangá e a revista que serializa Jashin-chan Dropkick. No começo do anime, o recurso serve como alívio aos castigos contra Jashin-chan, mas no decorrer dos episódios, o seu tratamento se relaciona com um diálogo com o universo pop que a série abarca.
Jashin-chan Dropkick demora a engrenar, porém, com o tempo, o que o programa tem a oferecer de melhor começa a se destacar, que são as suas personagens – como já mencionado. Ainda que careça de um desenvolvimento mais firme, Jashin-chan, Yurine e suas companheiras anjos e demônios conseguem ser suficientemente atraentes para conquistarem atenção e um vislumbre em suas confusões e desejos. E por mais que o humor físico não tenha o splitter com seu principal aliado, o saldo de Jashin-chan Dropkick não termina em vermelho, pois concretiza sua dramédia revelando o embate entre natureza e cultura na figura de uma demônio que segue seus instintos – a maioria oportunistas – mas é capaz de realizar ações virtuosas.
Não há nada mais humano que a contradição, e Jashin-chan Dropkick lida com oposições e sentimento conflitantes, nossos atributos e nossas falhas. Às vezes seu humor deixa uma sensação agridoce, mas, no geral, diverte, com suas personagens cativantes e uma boa dose de apreciação (ainda que não seja contundente) da organização da vida em sociedade.