Shirobako e Demi-chan wa Kataritai (Interviews With Monster Girls) são animes em que o trabalho surge como um dos temas e/ou pano de fundo, seja explorando o processo de produção – no caso de Shirobako temos ainda a metalinguagem, indo fundo na concepção e resultados de um anime – ou a maneira que o labor pode tornar a vida de outros melhor – na pesquisa e tentativa de compreensão do professor das meninas monstro em Demi-chan wa Kataritai, um belo exemplar de mix de slice of life, sobrenatural e comédia. O trabalho (a forma como nos relacionamos com ele e suas regras) passou por muitas mudanças ao longo dos séculos. Porém, sentimentos e sonhos são algo que sempre estiveram presentes nas progressões e regressos que o trabalho sofreu a cada nova alteração promovida em algum período da história.

No mundo contemporâneo, trabalho, modo de vida e realização estão em plena conexão. O que faz desta época, segundo estudiosos como Jean Braudrillard, Gilles Lipovetsky e Zygmunt Bauman entre outros, uma sociedade de consumo. O ato de consumir passou a pautar nossa existência, intermediando as relações entre os indivíduos. Neste sentido, pode-se falar da mercantilização da própria vida. Boa parte do nosso tempo disponível é dedicado à obtenção da remuneração mensal (extras, etc.), em um processo “automatizado”, que não considera, e muitas vezes descarta, o reconhecimento social. Se por muito tempo, antes da chamada pós-modernidade, a segurança, a estabilidade e o acúmulo, no intuito de algo que perdurasse como resposta às intempéries da vida e as catástrofes naturais, formavam a base de uma sociedade de produtores (modernidade), hoje a sociedade consumista procura leveza (livrar-se de “amarras desnecessárias” e produtos têm prazo de validade em um mundo em que a tecnologia se supera rapidamente), o deslocamento e liberdade individual (com o aumento da insegurança como evidente efeito colateral) e não se importa muito com a estabilidade em relação às suas conquistas. A oportunidade é o cálice sagrado.

Mas em tempo de crises econômicas, que balançam constantemente o mercado financeiro, o trabalho é uma vítima desta era que aboliu as certezas. Por isso, os animes Shirobako e Demi-chan wa Kataritai ocasionam a chance de examinar os afetos gerados e as dificuldades encontradas no ambiente de trabalho – ainda que o foco das produções não seja desvelar as relações de trabalho no Japão ou no mundo (já que, como nos recorda Milton Santos, “a localidade se opõe à globalização, mas também se confunde com ela”).

Shirobako: a indústria do anime em foco

Shirobako é uma produção de 2014, que conta com 24 episódios e mais 2 OVAs. A direção é de Tsutomu Mizushima (de Another [2012] e Girls und Panzer [2013]) e o roteiro de Michiko Yokote (de Air Master [2003] e alguns dos scripts de Cowboy Bebop [1998]). A série segue os sonhos de cinco amigas de fazer parte da indústria dos animes e de um dia realizar a produção que iniciaram no Clube de Animação do Colégio Kaminoyama. Aoi Miyamori (assistente de produção), Ema Yasuhara (animadora), Midori Imai (no afã de tornar-se roteirista), Shizuka Sakaki (em busca de conseguir um emprego como seiyuu, isto é, dubladora) e Misa “Mii” Toudou (profissional em computação gráfica) são as jovens que passam pelas emoções envolvendo a feitura de duas obras animes.

Nos dois arcos em que o anime é dividido, são apresentados todos os funcionários da Musashino Animation, estúdio em que Aoi e Ema trabalham, e a qual, mais tarde, Midori, Mii e Shizuka se juntam para realizar os projetos que poderão dar novo impulso à empresa, que vive assombrada pelo fantasma de um fracasso descomunal.

O trabalho dos sonhos pode ser uma realidade?

Ao longo de seus 24 episódios, Shirobako, além dos sonhos de realização artística e profissional, apresenta o funcionamento organizacional de um estúdio de anime quando está decidido que projeto será levado em diante. A criação e a técnica são destrinchadas, ora como tensão entre seus membros, ora evidenciando a solidariedade entre as equipes. Competitividade e desentendimentos fazem parte do pacote. Mas há uma leveza no tratamento desses fatos. Na verdade, a cooperação e uma saudável competição interna ditam o ritmo. A pressão pela realização dos projetos – com peso nos fatores tempo e audiência – e a falta de confiança nas próprias habilidades são mais explorados que conflitos e rivalidades. No entanto, o estresse, a mudança de emprego em busca de salário ou posição melhor e as metas propostas para a consagração dos sonhos da adolescência se fazem presentes nas ações e personalidade de cada personagem.

Para o teórico em administração Peter Drucker, o conhecimento controla o emprego, pois estamos em uma sociedade que estimula a competição e é tecnológica. É preciso investir no que a inteligência tem a oferecer. E os aspectos conhecimento e tecnologia têm relevância em Shirobako, e acompanhar cada etapa da produção de um anime é um dos pontos altos da série. Além disso, a obra ainda destaca uma discussão presente em toda expressão artística: sentimento versus técnica. O que para o cinema e TV pode ser expandido para um debate acerca de História contra efeitos visuais (em Shirobako, representado pelos animadores e profissionais em gráficos 3D).

A seiyuu Shizuka Sakaki: batalha árdua na cidade grande

Desilusões e incertezas, como a de Aoi, fazem parte da vida dos jovens na casa dos 20 poucos anos que estão à procura do seu “lugar ao sol”. Assim como o trabalhar a ponto de adoecer, em uma indústria na qual o prazo tem um valor determinante. É o que acontece com os animadores e assistente de produção, em especial.

No Japão atual, o excesso de trabalho se tornou um problema – gerando, enfim, debates públicos a respeito. A longa jornada de trabalho e a dedicação extrema ao emprego, por parte de jovens que acreditam não haver alternativa a não ser trabalhar com horas extras absurdas ou não ter como proporcionar o futuro almejado, fazem com que o duo ideal sustento-sucesso extrapole os limites das forças física e mental. Karoshi é o termo engendrado para definir as mortes ocasionadas pela estafa profissional, sendo que infartos, derrames e suicídios estão entre as principais causas. Deve-se citar também os distúrbios psíquicos, entre eles a Síndrome de Burnout, conhecida como esgotamento profissional, que consiste no sentimento constante de fracasso, estresse prolongado no trabalho e diminuição da realização pessoal. O crescimento vertiginoso de diagnósticos de transtornos emocionais em trabalhadores – seja de qual área for – faz com que a medicalização seja um fenômeno em boa parte do mundo. As jovens profissionais de Shirobako chegam a flertar com as linhas divisórias que separam comportamentos e sentimentos que podem gerar um real perigo para a saúde (de quando a falta de certeza acaba por gerar a sensação de sentir-se deslocado/perdido e a persistência se torna insistência para depois levar à frustração). Há sutis diferenças, mas que o nosso emocional transforma em “bicho de sete cabeças”, ainda mais em um tempo de instabilidade no que concerne ao trabalho e aos modos de vida.

Demi-chan wa Kataritai (Interviews With Monster Girls) é uma série de 2017 (12 episódios + 1 OVA), que marca a estreia de Ryou Andou na direção e foi roteirizada por Takao Yoshioka (Elfen Lied, de 2004).

Essa comédia escolar tem como protagonistas três estudantes que apresentam uma peculiaridade: são meninas monstros que passam a frequentar um colégio de seres humanos comuns. O slice of life tem toque fantástico, mas aborda coisas bem reais, presentes no contemporâneo, principalmente a relação com o diferente, o estrangeiro, aquele que não “corresponde ao que nós somos”.

As meninas-monstro: conhecimento, curiosidade e afetos

Em destaque, temos o professor Tetsuo Takahashi, um homem dedicado ao seu trabalho. O desejo por conhecimento o leva a pesquisar os seres chamados Ajin ou Demi, que possuem características que os distinguem dos humanos “normais”. As estudantes Hikari Takanashi, uma vampira que esbanja simpatia e energia, Kyouko Machi, uma dullahan que é a gentileza em pessoa, e Yuki Kusakabe, uma mulher da neve que tem dificuldade em lidar com a sua timidez e tristeza, aceitam conceder entrevistas para o professor Takahashi. As três também se sentem curiosas acerca de sua condição de demi. Além delas, a professora Sakie Satou, uma succubus que evita contato com homens a todo custo por temer que seu poder afrodisíaco se manifeste.

A partir disso, Takahashi escuta (pois é um exercício que nasce da fala do outro e que leva a compreensão e a possibilidade de auxílio) as dificuldades enfrentadas no cotidiano pelas adolescentes e por Sakie e os conflitos internos que cada uma delas carrega. Assim, Takahashi-sensei ajuda a construir um ambiente receptivo para as demis e conhece mais de suas naturezas.

A succubus à procura do seu lugar no mundo

Demi-chan wa Kataritai ao retratar o diferente pela figura de meninas-monstro toca, ainda que de leve, em assuntos urgentes nos dias de hoje, como intolerância e preconceito. Como os estudantes humanos desconhecem o que é, e o que sente as demis, mantêm-se afastados ou a comunicação sempre tem algum ruído que impede a aproximação. Em certo momento, Takahashi é acusado pela diretora de dar demasiada atenção às adolescentes (esquecendo-se do restante do corpo estudantil), prejudicando, desta forma, o desenvolvimento delas e as chances de se enturmarem por conta própria. Apesar do baque, da autocrítica que poderia levá-lo a desviar-se do caminho do acolhimento, o reconhecimento das estudantes garante o louvor aos esforços do professor Tetsuo.

Em uma época que o magistério, a docência sofre uma considerável desvalorização, um anime como Demi-chan wa Kataritai nos faz refletir sobre a importância de um profissional que, além de ensinar disciplinas escolares, pode colaborar na ampliação da visão de mundo dos estudantes. No Japão, há produções cinematográficas que mostram o quanto a ideia de mentor – de um sensei que faz diferença na vida dos alunos – é levada a sério, como em Madadayo (1993), de Akira Kurosawa. Contudo, há filmes que apresentam o outro lado da moeda, em que atritos e violência regem às relações em classe e fora dela, e ainda o ijime – bullying no Japão -, maior causa de suicídio entre os jovens no país. Pode-se citar o longa-metragem, indicado ao Oscar, Confissões (2010), de Tetsuya Nakashima – que leva essas questões ao extremo, com psicopatia e vingança como um dos elementos de seu enredo.

Shirobako e  Demi-chan wa Kataritai destacam seus protagonistas em seus respectivos ambientes de trabalho. Uma oportunidade rara e feliz. Se Shirobako nos entrega a amizade como um valor para enfrentar a dureza da vida adulta e os resultados exigidos pelo mercado de trabalho, Demi-chan wa Kataritai explicita o quanto a vocação, dedicação e idiossincrasias que criamos para lidar com as desventuras da profissão são fundamentais para nós e para ajudar aqueles que nos circundam.

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