Os sobreviventes

Bom dia!

Onitakemaru está morto. Os últimos retentores do clã Sou estão mortos. Kano provavelmente morreu, mas não sem antes sofrer um destino pior do que a morte. Amushi só pode ter morrido depois de um ferimento daqueles. E a Sana, acredito, morreu com ele, emulando Tatsu, a quem tanto admirava.

Jinzaburou, porém, está vivo para continuar lutando contra os mongóis, que agora partiram para Kyushu. E Teruhi também está viva, para continuar lutando pela ilha de Tsushima, protegendo os poucos e desgraçados sobreviventes.

Eu cantei esse final antes, não foi? Era absolutamente previsível, não estou me gabando de possuir dotes mediúnicos para previr finais de anime, acho que Angolmois já havia telegrafado qual seria o resultado. Mesmo assim, conseguiu entregar um final potente e emocionante. Depois do episódio anterior achei que não fosse possível.

Na reta final, Angolmois surpreendeu e entregou o que tinha de melhor.

Assim que o anime terminou, lembrei de uma poesia de guerra que eu conheço. Depois lembrei de outra. Existe todo um gênero dedicado a poesias de guerra.

O ponto forte de Angolmois não é sua animação, perceptivelmente abaixo da média e com aquele infame filtro. Não são suas batalhas. Nem mesmo seus personagens, que podem até não ser ruins, mas não brilham muito também.

O ponto forte de Angolmois é que ele emociona.

Por isso me lembrei de A Carga da Brigada Ligeira, de Lord Tennyson. Vou compartilhar com você:

 

Os últimos soldados de Jinzaburou, sobrepujados em número desde o começo da batalha, se preparam para seu combate final

 

A Carga da Brigada Ligeira

Meia légua, meia légua,
meia légua em frente,
todos no Vale da Morte
cavalgaram com os seiscentos

“Para a frente a Brigada Ligeira!
Carreguem contra as armas!”, disse ele.
Para o Vale da Morte
cavalgaram os seiscentos

Para a frente a Brigada Ligeira!
Havia algum homem desanimado?
Todavia, o soldado não sabia
De algum que tivesse disparatado.
Eles não têm de responder,
eles não têm de se perguntar,
eles só têm de fazer e de morrer.
Para o Vale da Morte
cavalgaram os seiscentos

Canhão à direita deles,
canhão à esquerda deles,
canhão à frente deles
saraivaram e trovejaram;
atingidos por balas e obuses,
com audácia eles cavalgaram e bem,
para as mandíbulas da Morte,
para a boca do inferno
cavalgaram os seiscentos

Reluziram todos os seus sabres despidos,
reluziram ao rodopiarem no ar
sabrando os artilheiros lá
carregando contra um exército, enquanto
todo o Mundo se maravilhava.
Mergulhados no fumo das baterias
através da linha deles romperam a direito;
cossacos e russos
cambaleantes das sabradas
estilhaçaram-se e fenderam-se.
Então eles cavalgaram para trás, mas não,
não os seiscentos

Canhão à direita deles,
canhão à esquerda deles,
canhão à frente deles
saraivaram e trovejaram;
atingidos por balas e obuses,
enquanto cavalos e heróis caíam,
eles que haviam lutado tão bem
vieram através da mandíbulas da Morte,
de volta da boca do inferno,
tudo o que restava deles,
o que restava dos seiscentos

Quando irá a sua glória desvanecer-se?
Oh, a carga bravia que eles fizeram!
Todo o Mundo se maravilhou.
Honrem a carga que eles fizeram!
Honrem a Brigada Ligeira,
Nobres seiscentos

 

Essa poesia se refere a uma batalha real ocorrida durante a Guerra da Crimeia. Durante a Batalha de Balaclava, por um erro de comunicação, a tal Brigada Ligeira, de apenas poucos mais de seiscentos cavaleiros ingleses, cavalgou dentro de um vale protegido por mais de cinco mil russos.

(Para entender o contexto direito, clique no link acima)

Mais de dois terços morreram. A poesia se tornaria um símbolo do absurdo da guerra. Se quiser uma versão mais pop, o Iron Maiden tem uma música inspirada nessa poesia: The Trooper (clique para escutar no Youtube). Erro de comunicação. Uma força muito menor contra outra muito maior – e mais bem armada. Inúmeras mortes desnecessárias.

E ainda foram recebidos como heróis. No artigo anterior eu escrevi sobre como é comum, ao longo das eras e das civilizações, que se enalteça o desprendimento que um guerreiro tem da própria vida. Está aí nessa poesia também: “Eles não têm de responder, / eles não têm de se perguntar, / eles só têm de fazer e de morrer.”. Não tem como ficar mais absurdo.

Angolmois mostrou esse absurdo. Esfregou ele na nossa cara. Antes mesmo do desespero da Teruhi, já víamos o absurdo nas traições, nas mortes. O absurdo atingiu seu auge quando, para salvar a vida de Teruhi, Kano precisou fingir que a mataria.

Jinzaburou enfrentou seu próprio absurdo também, quando, tudo já feito e acabado, o oficial mongol que enfrentou e matou Onitakemaru veio enfrentá-lo. Por quê? Porque sim. A diferença é que, tendo visitado a morte e retornado, Jinzaburou entendeu que a guerra é mais do que isso.

Ainda que seu destino continue sendo apenas lutar. Se Teruhi tem de lutar no sentido figurado pelos que sobreviveram, Jinzaburou precisa literalmente lutar pelos que morreram.

E isso nos traz à segunda poesia: Nos Campos da Flandres, de John McCrae. Essa é assim:

 

Teruhi caminha por entre os cadáveres de homens, mulheres, crianças, soldados e civis, todos massacrados

 

Nos campos da Flandres

Nos campos da Flandres
as papoilas estão florescendo entre as cruzes
que em fileiras e mais fileiras assinalam
nosso lugar; no céu as cotovias voam
e continuam a cantar heroicamente,
e mal se ouve o seu canto entre os tiros cá em baixo

Somos os mortos… Ainda há poucos dias, vivos,
ah! nós amávamos, nós éramos amados;
sentíamos a aurora e víamos o poente
a rebrilhar, e agora eis-nos todos deitados
nos campos da Flandres

Continuai a lutar contra o nosso inimigo;
nossa mão vacilante atira-vos o archote:
mantende-o no alto. Que, se a nossa fé trairdes,
nós, que morremos, não poderemos dormir,
ainda mesmo que floresçam as papoilas
nos campos da Flandres.

 

O tom é muito mais triste, trágico. E não é para menos: McCrae era um tenente-coronel canadense que participou da Segunda Batalha de Ypres, na Primeira Guerra Mundial. Os aliados, por quem ele lutava, venceram. Mas a batalha foi um inferno e, mais importante para McCrae, um seu amigo morreu.

Mais sobre as circunstâncias da poesia nesse link. Se quiser versão musical, essa também tem, pelo Crimson Falls (que é quase só uma declamação da poesia com fundo instrumental).

Nos Campos da Flandres começa de um ponto diferente de A Carga da Brigada Ligeira, e é compreensível que seja assim: em maior parte, é um grande lamento. É puro luto.

Igual a situação em que ficou Tsushima depois da passagem dos mongóis. O que restou para aquela gente? Quantos deles será que não preferiam ter morrido depois de tudo pelo que passaram, depois de tanto sofrimento? Como será que farão para sobreviver, com toda a ilha devastada? O que irão comer? Onde irão se abrigar?

A resposta está na última estrofe:

“Continuai a lutar contra o nosso inimigo; / nossa mão vacilante atira-vos o archote: / mantende-o no alto. Que, se a nossa fé trairdes, / nós, que morremos, não poderemos dormir”

É dever de quem sobrevive continuar a lutar enquanto a guerra continuar. Desistir da luta é desrespeitar a memória daqueles que se foram.

Jinzaburou tem que partir para Kyushu e lutar porque ele ainda é capaz de lutar. Com o que sabe, com o que aprendeu, ele pode ser a diferença entre Kyushu se transformar em uma gigantesca Tsushima ou não. E Teruhi tem que ficar em Tsushima, viver e fazer viver o que restou de seu povo. Porque esse é seu dever por duas heranças ancestrais distintas, na falta de uma: é neta do ex-Imperador do Japão Antoku e é filha adotiva de Sou Sukekuni, o administrador de Tsushima.

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