Happy Sugar Life – ep 12 final – Amor, estranho amor
O horror com happy ending é um legítimo filme de terror? Esperança versus medo. Reconciliação versus ruptura. Culpa versus perdão. Uma obra de terror é um passeio pelo inferno, mas pode não ser o destino derradeiro, pois há casos em que se encontra uma escapatória, um caminho que leva a(o) protagonista a se deparar com alguma segurança e/ou redenção, revelando, assim, uma luz no fim do túnel. Mas uma criança sentada em uma cama de hospital falando do amor que carregará para sempre por aquela que salvou a sua vida, com um olhar idêntico a sua protetora morta, num misto de simbiose e encarnação, acreditando não haver nada além daquela felicidade é um happy ending? O olhar de Shio é assustador. E é triste. Por isso, o sacrifício de Satou não significa a preservação da inocência da criança, mas sim o triunfo de um mundo perverso, da estrada pavimentada por adultos (afinal, as duas são frutos de lares abusivos) e seus desvios de comportamento, que geram os mais terríveis resultados. O episódio final de Happy Sugar Life – um desfecho original, já que o mangá ainda está em andamento – encena o amor, contudo entrega, nas entrelinhas, algo diferente: um palácio de ilusões, um tipo de felicidade possível apenas para pessoas quebradas, já que o lado de fora está contaminado.
O amor de Satou é um amor egoísta até o capítulo 12 da sua vida com Shio. A sua trajetória é marcada pelas ações e pensamentos de como manter a sua happy sugar life. A sua “redenção” ocorre nos seus últimos segundos, quando, depois de imaginar como seria uma vida futura inteira com Shio, ela protege a menina do impacto da queda. Pode-se dizer que nesse instante, Satou compreende verdadeiramente o amor, já que Shio deixa de ser a representação de um sentimento tão almejado e se torna a pessoa amada, real e digna da autoimolação.
Antes disso, é chocante o momento em que Shio diz que continuará com Satou mesmo tendo conhecimento dos crimes cometidos pela garota, incluindo o brutal assassinato de Shouko. Para Asahi, essa revelação e a negação da família, sustentada principalmente pelo ressentimento que Shio guarda pela mãe por causa do abandono, são duros golpes, já que a sua esperança, aquilo que o move, é a remontagem de sua família. A criança escolhe Satou em detrimento àqueles com quem tem parentesco.
A dúvida, a partir do episódio 10, era se Shio quando se reencontrasse com Asahi se recordaria do irmão. Se um confronto com Satou, poderia torná-lo um monstro a ser combatido pela falta da lembrança afetiva do irmão. Ela não apenas o tem na memória como está pronta a recusá-lo. É compreensível que o trauma gerado pelo abandono da mãe tenha contribuído para a consolidação do vínculo dela com Satou, principalmente pelas renúncias que ela acredita a garota ter feito em seu nome, para protegê-la. Desse modo, entre elas, além da forte ligação afetiva, há a dependência emocional. Shio, com sua visão infantil, mas já com o peso do mundo em suas costas, percebeu que a jarra no coração da mãe estava partindo, ela tinha essa compreensão, porém, com o tempo, a memória tornou-se enevoada, e, em seguida, a mágoa pelo abandono a empurra com mais força para Satou.
No começo do episódio, Satou prepara-se para vestir Shouko. Diante do corpo inerte da ex amiga, a jovem parece conter a sensação de remorso. Contudo, esse controle é mais do que suficiente para conter a onda do arrependimento. Satou não é Lady MacBeth. Ela tem convicção de seu amor, basta recordar das alegrias que Shio a proporciona para que permaneça indiferente a respeito de seu ato brutal.
Ela retira o anel de casamento para tocar o corpo de Shouko – talvez não deseje macular a sua união com o abominável assassinato – e o esquece no chão do quarto. Temos então a ironia que precipitará a catástrofe. Aquilo que representa o seu amor será o objeto que a trará de volta ao castelo que pretendia deixar para trás, para viver uma nova vida com Shio.
O plano é que a tia de Satou incendeie o apartamento para se livrar do corpo de Shouko e das provas dos crimes cometidos pela adolescente. Durante a execução da tarefa que cabe a mulher, Taiyo Mitsuboshi, que foi abusado sexualmente por ela (sentimentos mistos sobre as ocorrências na vida do rapaz, pois a compaixão é eclipsada pelo seu desejo doentio por Shio), consegue telefonar para Asahi do aparelho de Shouko e pedir socorro. Compreensivelmente, o garoto recusa-se a ajudar Taiyo, porém recebe a informação do paradeiro da irmã.
Quando Satou e Shio decidem voltar do aeroporto em busca do anel, a tragédia inicia seus movimentos. Satou resgata o anel, mas no estacionamento encontra Asahi. Um pouco antes, a sua tia já havia colocado em prática o plano, e o fogo já toma conta do décimo segundo andar. Para fugir de Asahi, elas voltam para o prédio em busca de uma saída. No caminho, encontram Taiyo. O estado emocional do rapaz é lamentável, ele grita por Shio, como se buscasse purificação, mas sua excitação revela apenas o pior de sua condição de vítima de violência sexual. Na verdade, a resposta que ele deu ao incidente, ao seu trauma (no caso dele, como nem todo pedófilo pratica crimes sexuais, é possível que o adequado tratamento consiga ajudá-lo a superar). Contudo, Taiyo nunca foi um real perigo para Satou, tanto que ela conseguiu manipulá-lo diversas vezes.
Já Asahi entra no apartamento incendiado e encontra o corpo de Shouko. É uma das cenas mais dolorosas desse último episódio. Ainda mais por ele se lembrar do semblante doce da garota lhe dizendo para sorrir no final. Shouko era a bússola moral em meio a pessoas quebradas e outras tantas perversas.
E é justamente Asahi quem sempre ameaçou a feliz vida açucarada de Satou. O tão esperado duelo entre eles tem violência, mas não é decidido pela fúria que sente e nem com a percepção de que a conexão entre Satou e Shio não é saudável. É a criança que resolve o embate ao se declarar a favor de Satou, reafirmando seu amor e recusando reatar os laços familiares. As revelações de que Yuuna abandona a filha temendo repetir com ela o gesto brutal do abuso físico que sofrera do marido e de que o havia envenenado para livrá-los do inferno em que viviam, não comovem Shio, apesar da criança se dizer agradecida pela mãe libertá-la de uma vida infeliz. A partir daí, com um pedaço de vidro apontado para a própria garganta, Shio proclama sua independência, dizendo que viverá por si mesma e escolhe Satou. Ela já havia demonstrado maturidade em outros momentos. Mas se Shio não fosse tão protegida por Yuuna e Asahi, e realmente compreendesse em toda a sua extensão o inferno em que vivia, o final poderia ser diferente? Talvez ela não bloqueasse as lembranças da mãe e a velocidade com que se apegou a Satou se daria em ritmo mais lento.
A verdade é que suas palavras são pesadas demais para quem procurou incansavelmente a irmã. A desolação de Asahi é algo crível, tão dolorosa quanto à descoberta do corpo de Shouko, e essa dor deve ser amplificada pelo fato de Shio assumir-se como cúmplice dos crimes de Satou. Quando elas correm para o telhado, o fogo coloca ponto final nas esperanças de Asahi. É a ocorrência definitiva para forjar a inevitável conclusão de amantes que se sacrificam para consagrar o seu amor.
E quem propõe o salto mortal é Shio, que anuncia ter se livrado da tristeza graças a Satou. É inquietante ouvi-la em tão tenra idade dizer que a morte é solução para que continuem juntas. Há romantização, mas é também a expressão perturbadora de todo o abuso que as consumiu. Satou do abuso emocional da tia e da visão distorcida sobre o amor e Shio da renúncia maternal do cuidado/proteção. Elas saltam e mais uma vez ouvimos a narrativa do sentimento de Satou e um vislumbre de uma vida futura que não irá se concretizar.
Satou livra Shio da morte ao proteger o corpo da menina da colisão. É um gesto altruísta, uma atitude de quem ama, porém é o que a fará viver eternamente em Shio, que no hospital está irreconhecível, transformada em uma mini Satou. Com Asahi ao seu lado, e a mãe aguardando do lado de fora do hospital (talvez um dia ela seja presa pelo assassinato do marido e nem chegue a rever a filha), a criança está em um mundo particular, emocionalmente deformada.
Ainda temos a prisão de Kitaumekawa-sensei – ou pelo corpo do pintor ter sido rastreado até ele ou por assédio sexual a suas alunas – e a tia de Satou sendo responsabilizada pelo incêndio e pela morte de Shouko. Temos, então, um final feliz? Satou salva Shio, enfim, conhecendo toda a intensidade do amor. E Shio tem seu amor pelo resto da vida como se possuída pelo espírito de Satou. É o triunfo do amor? Satou encontra a morte, pagando, mesmo que indiretamente, pelos seus crimes. É o triunfo da justiça?
É um final fechado – como mencionado, original para uma mangá que continua a ser serializado -, em que um amor não convencional, distorcido e que por ele atos abomináveis foram cometidos se perpetuará no coração e mente de uma criança. Se um encerramento causa mal-estar, um incômodo absurdo e dúvidas, é que temos algo ambíguo em mãos, como a falsa aparência da felicidade. Não é um happy ending, é o horror materializado em crianças e adolescentes que são a soma de todas as perversões promovidas pelos adultos. E quando esse sinistro fato se depara com uma yandere (Satou tem um sério distúrbio de personalidade) a tragédia está anunciada.
Happy Sugar Life cumpre seu potencial. É uma história para além de uma lolicon yandere. Ainda que tenhamos algumas personagens rasas, é uma densa obra sobre desvios comportamentais e o “submundo” das emoções humanas, um conto inteligente e perverso sobre pessoas em busca de sentido e outras vitimizadas pelas piores opressões. Happy Sugar Life é criativo e insano, como um verdadeiro show de horror que se preze.
fakelovex (@wtzsad_min)
AMÉM HAPPY SUGAR LIFE