Em tempos de luta contra crimes sexuais, como o assédio e o abuso, uma cena em que um condenado por um desses atos grita que ama garotas do ensino médio ao presenciar adolescentes apertando a bunda uma das outras presta um desserviço por apelar gratuitamente para um fetiche, premiando um pervertido e reacendendo nele os seus desejos libidinosos. Mas temos mais problemas nesse segmento: Madoka Kushitori, a capitã do time de Kabaddi, o chama de mestre, e ele é apenas um sem-teto que paga pela sua ação vil do passado, a de ter molestado uma estudante do ensino médio, supostamente por querer consumir a energia dela, já que ele andava esgotado emocional e fisicamente. Para piorar, mesmo com a clara expressão de repulsa de Manana, Madoka se solidariza com o relato. Ela volta a apertar bundas, já que tem uma compulsão e isso é algo que lhe proporciona prazer (cabe discussão também sobre a representação lésbica no anime). Apertar bundas sem consentimento, sabemos, é errado. O segundo segmento de Chio-chan no Tsuugakuro mantém em alta a dinâmica entre Chio e Manana, que são amigas trolladoras, terríveis, mas que se adoram. Porém, a loucura afetuosa (ou afetuosa loucura), com deboche, presepada e rivalidade, que rola entre as garotas é insuficiente para dirimir os equívocos da primeira parte.

No primeiro esquete do sexto episódio, temos Chio e Manana conversando sobre o desaparecimento de Madoka. Coincidentemente, elas encontram a jovem em um intenso treinamento de kabaddi no parque. Manana desconfia que o sumiço e a dedicação extenuante de Kushitori-senpai têm relação com a derrota dela para Chio. Algo que elas confirmam, já que o tronco que serve de adversário está com peruca ruiva e óculos. Depois disso, o segmento descarrilha ao colocar em cena o suposto mestre de Madoka, alguém pouco nobre, já que se trata de uma pessoa que cometeu um ato impróprio no metrô com uma estudante do ensino médio (um chikan [molestador]).

Chio-chan colocando Manana em apuros. Kabaddi! Kabaddi!

É certo que as personagens de Chio-chan no Tsuugakuro não são exemplos éticos, principalmente suas protagonistas, mas colocar alguém que possivelmente traumatizou uma menina como mentor de uma jovem com uma séria compulsão de bolinar suas parceiras de esporte e ainda a incentivando a liberar com uma sentença cavilosa, “Apenas garotas do ensino médio podem tocar garotas do ensino médio”. Obviamente, é a sabedoria de um voyeurista. Além disso, toque sem consentimento é desrespeito ou crime. A comédia tem um limite, como tudo na vida.

Manana e Madoka frente a frente: a garota tenta ajudar mas acaba contribuindo para o despertar do “tatear”.

Manana é atirada por Chio na cova, já que ela é o alvo de Madoka. A inabilidade social de Manana quase coloca tudo a perder. Voltar a ofender o kabaddi não é uma boa ideia, porém a intervenção do mestre-abusador é o princípio para que Madoka não se reprima mais. Ao ver a calcinha de Manana, a capitã saliva e reconhece o motivo de gostar tanto do esporte: apertar a bunda das atletas. Enlouquecida ou livre, Madoka não se segura mais e parte para satisfazer seu desejo. Manana se livra ao denunciar a presença de Chio, que não consegue escapar e é com ela que Kushitori-senpai sacia a sua vontade de manter contatos voluptuosos com o corpo das adversárias. Mas Chio não tem escrúpulos de usar as pessoas para se livrar de uma situação e coloca no fogo Yuki Hosokawa, por quem Madoka tem uma forte atração. Uma artimanha moralmente duvidosa já é esperada de Chio.

Como se simpatizar com uma personagem condenada por molestar uma adolescente no trem? Um fetiche, um deslize colossal.

Para quem se atentar, no final do segmento temos o som de uma cela se fechando, uma evidente alusão que o tipo de comportamento apresentado pelo tal mestre é crime, dá cadeia. Porém, mesmo com o excelente trabalho da equipe de som – no geral, o design de som do anime é acima da média –, e com o fato do ex executivo ser atualmente um sem teto (fica na rua da amargura após o abuso sexual), a anedota acaba por transformar um pervertido em um sábio, com suas lições abjetas sobre aproveitar o frescor da juventude, mesmo que isso configure crime sexual.

A segunda parte traz Chio tentando pregar uma peça em Manana, pós-empolgação com um jogo de videogame americano de espionagem. Antes disso, temos Chio passando certificado de loucura na rua, fingindo que está em uma missão, fazendo sua bolsa de arma. Uma mulher e seu filho, do primeiro episódio, presenciam a brincadeira. Por sorte, a mãe aproveitar para instruir a criança a olhar para os dois lados antes de atravessar a rua. As tolices de Chio pelo menos têm uma serventia pedagógicas.

Assim, que a garota avista Manana na ponte, decide reproduzir o jogo para assustá-la. No entanto, a brincadeira não sai como esperado e Chio está em apuros. Pendurada na lateral da ponte, precisa socorrer a amiga para se salvar. Mas Manana não é o tipo de pessoa que perderia a chance de tripudiar com alguém em uma enrascada dessas. Como já é de praxe no contemporâneo, entre o auxílio e o registro, ela opta em filmar a cena. Só que é surpreendida por Chio que a puxa para baixo deixando ambas em uma posição complicada.

Brincadeiras absurdas, trollagens e muito afeto: nenhuma das duas perdoa quando o assunto é ridicularizar.

A partir do choro de Chio e de sua desculpa, elas decidem trabalhar juntas para sair do imbróglio em que se meteram. Conseguem o intento, para logo depois estarem se engalfinhando novamente. Só com a ajuda de um transeunte é que conseguem se ver livres da confusão e escaparem do mergulho no rio.

A situação é clássica, em que se vai do apuro à solução, que traz um novo desastre, assim sucessivamente. Porém, é impagável a união Chio-Manana, desde as bobagens que falam aos atos inconsequentes que realizam. Quando o anime foca no absurdo, nas tolices da dupla central e na interação com as outras personagens, geralmente com algumas referências a jogos eletrônicos e ao universo pop, Chio-chan no Tsuugakuro consegue ser incrivelmente engraçado.

Um resgate que quase deu certo. Chio e Manana, sérias candidatas a melhor dupla de 2018.

No entanto, não se pode ignorar o deslize da primeira parte. A série tem secundários interessantes e protagonistas afinadas na loucura, então que siga um caminho em que explore falhas morais e exponha seus personagens ao ridículo, mas evitando um tipo de humor inoportuno e de mau gosto, em que um criminoso sexual se sacie com as estripulias sem medidas (que também é abuso) de adolescentes bolinadoras.

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