The Promised Neverland, ou Yakusoku no Neverland, é originalmente um mangá publicado nas páginas da famosa Weekly Shonen Jump. A obra é escrita por Kaiu Shirai e ilustrada por Posuka Demizu, que está sendo lançada desde 2016 e antes mesmo do seu anime já era dona de um sucesso astronômico convertido em altas vendas e elevada popularidade.

Merecidas? Sem dúvida alguma, ao menos de acordo com o seu primeiro arco que foi adaptado em um anime de 12 episódios produzido pelo estúdio CloverWorks. Fique comigo e leia esta resenha, disso eu espero que você não queira fugir…

Grace Field House é um orfanato que possui uma cuidadora amorosa, camas limpas, comida quentinha e muito espaço para o lazer; o lugar perfeito para a criação de uma criança, exceto pelo fato de que esconde um segredo aterrador e é quando ganham conhecimento dele que Emma, Norman e Ray bolam um plano de fuga para escapar de uma Terra do Nunca que na verdade é o mesmo que suas covas.

A face aterradora da verdade.

Neverland trata de um tema pelo qual a ficção é apaixonada: a subversão do sistema vigente. Isso, claro, promovido por aqueles que mais sofrem com ele. Nesse caso as vítimas são as crianças que, criadas feito gado em fazendas, não têm consciência de que suas vidas felizes são limitadas e servem apenas para agradar o paladar refinado de demônios que desconhecem.

É ao descobrirem uma verdade tão nefasta que Emma e Ray, duas das três crianças mais velhas, começam a pensar em sair dali levando consigo a família que desejam proteger. A terceira criança mais velha, Ray, é quem induz os outros dois a revelação e se anexa aos planos posteriormente.

Aliás, os três protagonistas serem considerados pequenos gênios foi uma forma esperta do autor de dar vasão aos embates mentais entre as crianças e os adultos da casa – Isabella, a cuidadora, e Krone, a auxiliar que se junta depois –, conferindo a eles um tom de estratégia e inteligência por vezes até exacerbados, mas que nunca deixavam a narrativa cair no tédio.

Afinal, em uma guerra de intelectos privilegiados o telespectador sempre se sente curioso por ver quem dará a cartada final.

O anime se constrói em cima desses confrontos minuciosos, mas também nas revelações gradativas dos mistérios que cercam o orfanato e o mundo em si, além das deixas para a já anunciada continuação e a urgência pela liberdade, a aversão que o ser humano sente quando tem consciência da sua prisão.

Quando sua mãe é sua pior inimiga.

Voltando a trama em si; Emma, Norman e Ray formam um grupo interessante e homogêneo, porque o que falta a um pode ser encontrado nos outros dois, seja de bom ou de ruim.

Existem outras três crianças dignas de nota nessa primeira fase do anime: Don, o mais sincero e atlético; Gilda, a observadora e conciliadora; e Phil, aquele que “herda” a vontade dos irmãos mais velhos. Todos eles são importantes para esse arco da fuga, é verdade, mas a história gira em torno mesmo é dos mais velhos, de como são as suas escolhas que darão forma ao sucesso ou insucesso do plano.

Logo Norman, o mais meticuloso e perspicaz dos três, toma a frente dos planos e não demora muito para que Ray, o mais racional e pessimista, seja pego na mentira e revelado como agente duplo.

Ray, Emma e Norman.

A passional e honesta Emma perdoa o amigo e junto a Norman buscam entender melhor suas motivações e circunstâncias, ambos relevantes para o sucesso do plano.

Tirando a clara forçação de barra que é a memória de elefante do Ray, sua frustração e culpa advindas do conhecimento da verdade e da impotência para fazer alguma coisa a respeito, ao menos até antes daquele momento, caracterizam o personagem e adicionam a ele camadas necessárias para que o tomemos não como um vilão, mas como o que ele de fato sempre foi: apenas mais outra vítima.

Outra personagem com circunstâncias diferentes, e que até por elas teve o fim que teve, é Krone, que coloca suas aspirações acima do interesse do sistema de plantações e, de tal forma, promove uma rebelião a seu modo.

Poderiam ter lhe tirado a liberdade e a condicionado a vida de cuidadora, mas não a tiraram a capacidade de fazer suas próprias escolhas, não por completo, e acho que a adição da personagem a trama e o que foi trabalhado por meio dela foi algo positivo, pois, ainda que ela seja uma agente do mal perpetuado ali naquele ambiente, ela não deixava de ser uma vítima.

As condições impostas aqueles que cuidavam das crianças nas fazendas foram os meios mais claros de distinguir isso. O que também valeu para a Isabella, que sim, foi a principal vilã desse arco, mas não, isso não a abstém da sua posição de vítima daquele sistema, só a torna tanto agente ativa quanto passiva da problemática abordada ao longo da narrativa.

Mama Isabella, controversa que só ela, mas, sem dúvida alguma, arrasadora…

Enfim, em uma história como a de Neverland, um thriller psicológico cheio de boas sacadas, as revelações e reviravoltas não poderiam não ter seu espaço, né? Não à toa que vários dos melhores momentos do anime ou foram cliffhangers ou situações que desembocaram em um caminho inesperado por uma série de fatores.

Algumas vezes sim, a lógica de alguns acontecimentos pode e deve ser questionada, mas geralmente foi de se elogiar os desdobramentos resultantes desses momentos.

Pode ser conveniente o Ray lembrar de tudo, mas não deixou de ser um momento impactante a cena em que fica clara a sua origem. O mesmo vale para o desfecho da Krone e como é explorado o seu desespero. E como não citar a maneira cruel como um dos três protagonistas é sacado do arco?

Isso pode não ter sido tão instigante quanto fora no mangá, mas não deixou de representar um ponto de virada para a trama, e um emocionante, que não chocou apenas por chocar, porque havia algo de relevante sendo trabalhado ali.

De frente para o desespero.

Os embates psicológicos tais quais um jogo de xadrez são uma marca registrada da obra e, ainda que não tenham sido tão minuciosos como são no mangá, a produção da adaptação acertou em muitos momentos, seja quando foi fiel ou quando tentou fazer um pouquinho diferente.

Não diria que o saldo é de todo positivo, mas foi uma adaptação digna da obra, o problema é que ainda havia espaço para ser melhor, para retocar mais do material original e não apenas melhorar nos momentos mais pungentes, como aconteceu.

Nos episódios mais graves para a narrativa a direção e o resto da produção brilharam sem igual, mas nos episódios de desenvolvimento se aproximar mais do mangá ou se distanciar dele de forma diferente – não adicionando trejeitos caricatos a Krone ou pensando nos pequenos problemas lógicos que são expostos na transição entre mídias – talvez tivesse sido o melhor.

A audácia de um plano.

Tirando os cenários internos da mansão, que eram bem limitados no geral, a arte foi bastante agradável e manteve a consistência ao longo dos três meses, assim como a trilha encaixou bem e o trabalho dos seiyuus foi valoroso. Nada tão acima da média para um anime de televisão, mas nunca abaixo também.

Em todo caso, era o mínimo que se poderia esperar da adaptação de um dos mangás mais rentáveis e populares do Japão antes, durante e após o seu anime, não é mesmo?

O anime de Yakusoku no Neverland veio para fortalecer a franquia – já abastecida por spin-offs em mangá e light novel, além do lançamento de produtos e afins – e foi bem-sucedido nesse sentido, não fez feio a fama do bloco no qual foi exibido – o bloco NoitaminA, conhecido por exibir animes cultuados por mais do que o seu apelo comercial – e com certeza expandiu o número de seguidores ansiosos pela continuação já anunciada para 2020.

Norman, vivo ou morto?

Mas, repito a pergunta, todo o estardalhaço do anime foi merecido? Dadas as devidas proporções eu acredito que sim e muito por causa do final desse primeiro arco, o qual compensou todo o envolvimento afetivo depositado pelo público nos personagens e no plano de fuga tortuosamente traçado por eles.

O ser humano abomina a prisão até na ficção então essa torcida pelo sucesso dos garotos com certeza foi reforçada. A reta final compreendeu muitos obstáculos a serem superados e saídas em parte questionáveis, mas em sua maioria muito boas, afinal, todos os lados da balança por parte dos mocinhos – Norman, Emma e Ray – tiveram que ceder, que se adaptar para conseguir passar a perna nos vilões, nos adultos que eram os obstáculos a liberdade das crianças.

O Norman precisa abrir mão de seu senso de autopreservação, a Emma precisa abrir mão de suas convicções, assumindo riscos incalculáveis, e o Ray é dos três o mais “contrariado”, pois são seus irmãos que o mostram que há outro caminho e que o garoto tinha o mesmo direito de buscar a felicidade que os outros.

Todos esses sacrifícios feitos para alcançar o objetivo em comum foram uma ótima forma de trabalhar a ideia de que o sucesso para realizar algo sempre depende do esforço e do quanto a pessoa é capaz de ceder, de mudar, se adaptar e perseverar mesmo em meio ao desespero.

Vamos fugir? Vamos fugir!

O desfecho do arco de fuga não foi gratuito e nem incoerente de acordo com os acontecimentos explorados ao longo dos doze episódios do anime e eu acho que isso foi o melhor desse primeiro ato de Neverland.

Há problemas de forma e a suspensão de descrença se faz necessária em alguns momentos, mas a forma como o tema foi trabalhado foi muito boa.

É praticamente impossível não se sensibilizar com a história de busca pela liberdade dessas crianças, até porque não se compadecer com ela seria o mesmo que acusar que somos menos humanos, ou se não exatamente isso, que não valorizamos a nossa própria liberdade.

E queima a chama da esperança…

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