Zona de Atrito – Episódio 1: Quando os Adultos Crescem
Esta é a coluna Zona de Atrito. Nela, o real e a fantasia (seja aventura, ficção científica, magia ou terror), dois territórios da criação artística, serão os temas. Tratadas juntas ou separadamente. Atrito, pois as fronteiras entre a realidade e a imaginação nem sempre são evidentes. Às vezes são abolidas, em outras, misturam-se ao ponto da indistinção. Como disse o escritor Eduardo Spohr, “A fantasia é muito mais real que a própria realidade porque a fantasia faz metáforas com coisas que são verdadeiras e isso que é importante destacar”. A fantasia fala do que vivemos e do que poderemos viver, e também abre espaço para a possibilidade de discutir novos modos de perceber a vida. Hoje, dois animes que falam da mulher (não só japonesa) na contemporaneidade: a fábula Kanojo to Kanojo no Neko: Everything Flows e o conto sobre uma NEET Netojuu No Susume (Recovery Of An MMO Junkie).
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em A Arte da Vida, logo no título da introdução lança uma pergunta desconcertante: “O que há de errado com a felicidade?”. Em tempos de individualismo e consumismo exacerbados, culto à beleza, crises econômicas e o ter se sobrepondo ao ser (ainda que tenhamos focos de resistência), uma questão que nos leva a refletir sobre quem somos e o que queremos, tem o poder de expor nossas fragilidades e causar danos às nossas convicções. Ser adulto é lidar com inúmeros problemas, que, dependendo do rumo que se toma, transformam-se em perigos dos mais ardilosos. Sombras disso podem ser encontradas em dois animes adultos, com jovens adultos que nos revelam que crescer, parar e voltar a crescer são movimentos carregados de alegrias e frustrações, aqui, acolá e no Japão.
Kanojo to Kanojo no Neko: Everything Flows (em inglês She And Her Cat: Everything Flows), de 2016, com roteiro de Naruki Nakagawa, a partir do curta-metragem de 5 minutos de Makoto Shinkai (dos longas-metragens Cinco Centímetros por Segundo [2007], Your Name [2016] entre outros), e direção de Kazuya Sakamoto, e Netojuu No Susume (também conhecido como Recovery Of An MMO Junkie), de 2017, dirigido por Kazuyoshi Yaginuma e roteirizado por Rin Kokuyou, autora do mangá homônimo, contam-nos a história de duas mulheres, cada uma em fase distinta de suas vidas, porém com pontos de articulação no que concerne às tristezas geradas pela imensidão de expectativas que carregamos e sobrecarrega-nos.
Em Kanojo to Kanojo no Neko (4 episódios de 7 minutos aproximadamente) – uma fábula em que um gato, o já velho Daru, nos narra sua vida com sua cuidadora (que ele chama de Ela) –, temos Miyu, que deixa a casa materna para viver em um centro urbano. Logo no começo, sabemos que a sua melhor amiga, com a qual dividia o apartamento, está de mudança para a casa do namorado. Fato que aumenta a responsabilidade da garota, uma estudante universitária que procura emprego, mas ainda não obteve sucesso em sua cruzada. Os dias passam e a rotina prossegue. Miyu faz treinamentos diários, na frente do espelho, para as entrevistas. Alimenta Daru e enfrenta a cidade em busca de sua autoafirmação.
Pelos olhos de Daru, que tem percepção do quanto o mundo pode ser cruel e pouco compreensivo, vemos que Miyu se esforça e “quer gostar desse mundo”, como nos fala o gato a certa altura. Mas a distância dela para o gato vai se tornando perceptível para Daru, que, apesar de não entender o que a jovem fala, é capaz de senti-la, captar sua dor e tristeza. Há algo errado, ele sabe, mas não tem compreensão da extensão do sofrimento.
Então, todo o amor e companheirismo entre Miyu e Daru não impedem que o abatimento se torne melancolia e depressão. Miyu está insegura, sofre como seu esforço não sendo recompensado. Há um sentimento de vazio persistente. Ainda que a jovem deseje ter força para amadurecer. Com a mãe, Miyu tem uma relação de afeto, mas com atritos e incomunicabilidade. A morte do pai, o conflito entre partir e permanecer, a necessidade de ver a mãe feliz, e nisso desapegando-se pelo bem das duas, são sentimentos que Miyu traz para a vida que está constituindo. O conflito pessoal de Miyu é intenso e tudo é assistido pelo olhar simples e dedicado de Daru.
A solidão de Miyu é a das expectativas não alcançadas e como isso nos afeta. Estar perdido às portas da vida adulta (o que conduz a uma questão: a real linha cronológica do fim da adolescência) é algo normal e compreensivo. Mas ter certeza das nossas opções, vencer a insegurança e partilhar sofrimentos e quedas é algo que requer coragem em uma época em que ser feliz (aparentar felicidade) é uma exigência, e não criar laços é requisito para as novidades que a vida nos impõe. No Ocidente – em um mundo globalizado, não devemos esquecer –, essas práticas estão em uma “cartilha”. Voltando a Bauman, à margem de segurança que temos ou linha de fuga (para lembrar um conceito de Deleuze), está na associação a grupos e tribos, e as permutas que ocorrem, já que nossa identidade hoje é fluída e pular de clã em clã não é mais “pecado mortal”.
No Japão contemporâneo, há o termo hikikomori, que contempla jovens, entre os 15 e os 39 anos, que, de maneira voluntária, afastam-se da sociedade para evitar contato com o outro (em muitos casos, um dilacerante transtorno de ansiedade social). No que diz respeito aos hikikomoris, podem ser encontrados entre eles filhos que atingem os 40 anos e permanecem dependentes dos pais e sem experiência profissional para enfrentar o mercado de trabalho. Um problema que alerta a comunidade médica japonesa, porém esse desvio de comportamento afeta jovens de qualquer centro urbano do mundo – segundo pesquisas, com incidência maior em famílias com um bom poder aquisitivo.
Um quadro em que poderia se encaixar Moriko Morioka, personagem principal do anime Netojuu No Susume (10 episódios + 1 OVA). Moriko, ou Mori-Mori-chan, como é chamada por Koiwai-san, um carismático personagem secundário, é uma NEET, ou seja, Not currently engaged in Employment, Education or Training, e em “bom português”, “não estuda, nem trabalha”. Mas Moriko se define como uma NEET de elite, pois sua decisão foi deliberada. Estando no campo oposto de Miyu, Moriko não suporta mais o seu emprego, e, aos 30 anos, decide pedir demissão, deixando o mundo corporativo. Moriko é uma viciada em jogos online (ela adora jogar). No entanto, deve ser acrescentado que, para ela, o jogo é um refúgio, algo para aliviar o peso da existência, tanto que, longe do monitor do PC, sente a ansiedade crescer. Ainda que exercesse um cargo de destaque no meio empresarial, o esgotamento mental faz Mori-Mori-chan reavaliar suas prioridades e o novo rumo é condizente com a dificuldade que ela tem de se relacionar com as outras pessoas, de ser sociável, com sua introversão e baixa autoestima, além de ter como traço de sua personalidade, uma inclinação para autodepreciação.
A soma de todos os nossos transtornos. Em um sonho, Moriko vê homens engravatados que seguem em filas rumo a uma escada. No lugar dos rostos, máscaras, com pontos vermelhos em lugar dos olhos. Ao chegarem ao topo, atiram-se voluntariamente em um abismo. A mulher se horroriza. É um pesadelo bem real o de ser peça de uma engrenagem, em um emprego formal repetitivo e que não exige criatividade. Elemento amorfo em uma máquina de reprodução, que cobra resultado e consumo. Nisso, os jogos oferecem a chance de se ter uma “segunda vida”, de ser outra pessoa, até do sexo oposto (no Fruits de Mer, Moriko é “Hayashi”). É o que diz Yuuka Sakurai, interesse romântico de Moriko, que compartilha com ela o vício/amor pelos jogos online. Yuuka busca no MMO (Massive Multiplayer Online) a chance de atuar em uma realidade distinta da sua, assumir um novo “corpo”, além disso, mesmo que sozinho, não solitário. No jogo, estar junto de alguém distante. Para Moriko, o avatar pode desenvolver aproximações, promove o encontro de estranho em nome da diversão e objetivos comuns, e o jogo, o mundo virtual, proporciona uma segurança que a realidade não coloca à disposição.
Em Netojuu No Susume, o “eu real” e o “eu virtual” não são tratados como dualidade que projeta interferências a ponto do choque – loucura –, não dá ensejo a um romance em que se descobre o amor verdadeiro e nem é submetido a clichês que infantilizam as personagens, são críveis, na medida em que que trazem à tona o quanto podemos criar relações emocionais genuínas com aqueles/aquelas com quem convivemos, trocamos experiências, seja na dita realidade ou no mundo virtual. O mundo virtual não é a ausência da realidade, mas mais uma linha que se traça para existirmos, coexistirmos.
Sem a histeria, a amargura e as poucas surpresas de um filme como Jovens Adultos (2011, de Jason Reitman, estrelado por Charlize Theron), Kanojo to Kanojo no Neko e Netojuu No Susume tratam o início dos vinte anos e a chegada dos trinta, com delicadeza, inteligência e, no caso do roteiro de Rin Kokuyou, com humor. As dificuldades em relação às escolhas e o caminho seguido estão expostos. Só que um sopro de esperança, mudança se faz presente. Miyou prossegue, com o que aprendeu com Daru (sabemos o quanto que os animais que chamamos de domésticos podem nos ensinar) e em paz com a mãe. Moriko, apesar da timidez e da esfera pública ainda assustá-la, encontra em Yuuka Sakurai, e mesmo em Koiwai-san, o desejo de deixar a “concha”, investir mais em si mesma (para além dos assuntos abordados no anime, Netojuu No Susume é um excelente romance). Nenhum ser humano é uma ilha. E talvez seja verdade que sozinhos não damos conta da vida.
Os adultos crescem. Alguns naturalmente, outros amadurecem por necessidade, enquanto há casos de voltas e voltas até que um acerto de contas com a vida resulte em algo valioso. E em outro extremo, quando adultos crescem, Peter Pan deixa de ser uma síndrome e torna-se novamente apenas a personagem do dramaturgo britânico J. M. Barrie.
Sobre solidão e amadurecimento, Kanojo to Kanojo no Neko e Netojuu No Susume têm muito a nos dizer.