Mardock Scramble: The First Compression – Você, mulher, não deixe que usem você!
Mardock Scramble: The First Compression é um longa-metragem produzido pelo estúdio GoHands, a produção é a primeira de uma trilogia que adapta a série de livros de Tow Ubukata – que já escreveu para a franquia Ghost in the Shell.
A história acompanha Balot, uma menina de 15 anos que devido a diversas circunstâncias acabou na prostituição e depois se viu vítima de um crime hediondo, tendo a vida salva para depor em um tribunal e encontrar um lugar seu na sociedade. Enfim, vamos ao texto!
Não acho que os malfeitores da história, nem os “heróis”, são personagens assim tão dignos de nota, pois, não são nenhuma novidade para quem já viu uma obra que critica a estupidez humana e, claro, principalmente a do homem. É Balot que é interessante aqui, uma personagem que no início não me cativou, mas é praticamente impossível não se sensibilizar com seus problemas ao longo desse filme.
Não escrevo isso por pena nem por me sentir incomodado pela violência que dita o ritmo da vida da personagem. Na verdade, não exatamente por isso, mais porque seria leviano não tentar entendê-la e ainda que entendê-la por inteiro não seja possível – sou um homem, não devo ter noção de toda a dor dela –, me agravaria demais julgá-la.
Balot é uma personagem extremamente humana e por que não bela? Uma garota que perdeu a virgindade aos 12 estuprada pelo pai, viu seu irmão fazer justiça com as próprias mãos e acabar preso por isso, assim, tendo que trabalhar em um bordel, porque era o único caminho que achou que pudesse seguir; para ser usada novamente, e descartada igual a lixo.
Incomoda a você que ela tenha passado por tudo isso tão nova? Isso me incomoda sim, mas também me incomoda o fato dela ser mulher, e de eu saber que existem muitas Balots por aí que nunca terão uma chance de ao menos tentar começar de novo. Balot é o reflexo de uma sociedade machista cuja compreensão das circunstâncias das mulheres é sempre condicionada a “conveniência” dos homens.
Mas antes de entrar nesses meandros, acho bom comentar um pouco os outros detalhes da película. A animação, a trilha sonora e o trabalho de dublagem são muito bons, dignos da tela grande. Aliás, o estúdio GoHands tem uma certa boa fama, ao menos no que tece aos quesitos visuais, então eu não considero uma surpresa a qualidade do que vi.
O universo em que a obra se passa também auxilia, é uma bela cidade cyberpunk na qual uma lei chamada “Scramble 09” assegura condições para a “volta a vida”, ou quase isso, de Balot e melhoramentos em seu corpo, a tornando algo próximo a um super soldado. Mardock Scramble é sim uma trama de ação, mas é o drama o elemento chave da narrativa.
Ela é quase morta para atender aos caprichos de um dono de casino afundado em negócios escusos. A condição dele de ter que dar reset em suas memórias é algo interessante, é verdade, mas isso não muda em nada o que ele fez com a garota, se aproveitando da fragilidade dela para usar seu corpo e tentar controlar sua mente. Além de descartá-la quando e como bem entendesse, igual a um objeto.
Não importa a idade, o que aconteceu na vida de Balot é algo muito difícil de lidar para qualquer um, mas pensando justamente em sua inexperiência, inocência e fragilidade física e mental são plausíveis as reações que ela tem. De dúvida, de subvalorizarão do eu, de raiva, aversão, mas também de medo e consternação.
Ela é um emaranhado de sentimentos negativos e confusos trazidos a ela pelo leque de experiências traumáticas que sofreu na vida. Balot teve sua dignidade diminuída a de um objeto e não é como se as pessoas tratassem objetos com alguma “dignidade” para começo de conversa. Não gente capaz de matar ou mandar matar sem sinal de remorso.
Inclusive, uma das cenas mais bizarras do longa é quando o vilão mais ativo vai até caçadores de órgãos e os contrata para matar Balot. Não dava para esperar atitudes diferentes de gente que mata pessoas para sustentar fetiches envolvendo órgãos humanos, né? O chefe do grupo de mercenários mesmo é só outro lembrete de como existem homens que veem mulheres somente como ferramentas prontas para satisfazer seus podres desejos.
No meio disso tudo está uma garota que a princípio queria morrer porque sua vida era uma droga, só que também não quer morrer justamente por isso. É contraditório, eu sei, mas será mesmo tão difícil compreender o quanto é ultrajante morrer sem ter dignidade alguma ou sem achar que tem alguma?
O instinto de sobrevivência da garota fala mais alto, porque ela não se conforma com a própria sorte. Lá no fundo ela deve saber que nunca fez nada para merecer tudo pelo que passou e, na realidade, é justificável se aproveitar dela por qualquer motivo? Se ela tivesse transado com o pai por prazer isso a faria menos vítima? Por que a justiça faz juízo de valor de quem nem deveria ser acusada de nada?
Isso é errado, degradante e fere a dignidade da garota quando tudo o que o poder público precisava fazer era defendê-la. Enfim, o mundo não é legal com Balot, não à toa que ela facilmente confunde a gentileza com algo a mais, algo que a daria tudo, porque ela ainda é frágil demais para andar com as próprias pernas e somente com elas.
Repito, como julgar essa “entrega” dela se tem uma explicação bem lógica para isso. Balot não entende o básico dos direitos que têm como ser humana. Não é nem que não entenda, na verdade, ela não tem forças para reivindicá-los, pois foi criada onde as relações eram distorcidas demais para conseguir se amar sem dependência, sem encarar isso como o normal.
Toda a fundação do seu ser foi violentada e, mesmo assim, a jovem mostra forças para perseverar, ir de encontro ao que aqueles que lhe fizeram mal intentam. Tais monstros não devem ficar impunes e Balot vai tomando consciência disso ao longo da trama, então não é nada anormal, nem exatamente errado, quando ela sai em um rompante vingativo – extrapolando os limites que detêm Ouefcocque.
Por que ela não perderia a razão e devolveria ao menos um pouco na mesma moeda tudo aquilo que recebeu? Sentir ódio por quem faz mal a você é humano, é honesto, é condizente com esse caso. Do que vi nessa história, na verdade, acho que ela ainda fez foi pouco, pois logo foi capaz de acordar, né, e optou por se conter.
O final do filme em si termina com um cliffhanger safado que deixa o combate final em aberto, dando um gostinho de quero mais para o filme posterior, afinal, é difícil não querer ver a protagonista se dando bem após tanto sofrimento. Além dela mesma passar a se dar um valor que ela ainda está tomando consciência de que tem. Isso, durante essa jornada, será relevante se a personagem continuar a ser bem desenvolvida.
Ao final desse primeiro de três atos Balot passa a ser uma personagem querida para mim, alguém cujas circunstâncias me sensibilizaram profundamente, alguém que foi moldada por uma sociedade machista, sexista, determinista, imoral, amoral, doentia; mas não é apenas o substrato disso e está percebendo que as coisas podem ser diferentes – e serão.
Antes de me despedir acho que não poderia deixar de tocar em dois tópicos pertinentes.
O quanto o personagem Ouefcocque é interessante – ele é o mais intrigante e sofisticado avanço tecnológico de ponta desse mundo. Ele pode não entender o coração humano, mas é recompensante sua dedicação para interagir com a Balot sempre a passando a sensação de que está segura, de que ela pode confiar nele.
Segundo, a coisa que mais me deixou incomodado nesse filme foram as cenas de sexo, mais até que as de nudez, porque, dado o contexto é justificável, mas fiquei com a impressão de que teve sim um teor erótico que não encaixou muito bem com a proposta de justamente criticar o machismo e a objetificação da mulher. Às vezes os japoneses não conseguem encontrar um meio termo mesmo se a intenção é boa, o que eu diria que foi exatamente o caso.
Mas isso também não é o fim do mundo, né; o que resta a Mardock Scramble: The First Compression é uma trama consistente, instigante, que prende o telespectador por tomar as dores da protagonista e querer ver o seu final. Até o filme dois!
James Mays
Isto parece ser bom…Vou experimentar…