Bom dia!

A Netflix produziu e lançou um documentário sobre anime chamado Universo Anime, em português, ou Enter the Anime, no título original.

O Anime21 tem como diretiva primária a divulgação de animes, para quem já assiste e para novos públicos. É claro que nós não temos alcance suficiente para fazer muita diferença nesse mercado, mas da última vez que verifiquei a Netflix estava com uma audiência um pouco maior do que a nossa.

Então talvez seja bom?

 

"Não sei como fazer isso"

Ela está sendo honesta

 

Em primeiro lugar, é importante notar que os animes citados e divulgados pelo documentário são todos da própria Netflix, e, com exceção de Evangelion, são todos originais Netflix – ou seja, não são quaisquer animes da plataforma, mas sim animes que ela sempre terá.

Parece com propaganda, né? E é propaganda. Mas isso não é necessariamente um problema. Eles têm contas para pagar também, ora! E um acervo razoável de animes, mesmo considerando apenas seus originais. Isso é algo que logo me deixou em alerta conforme eu assistia, mas não precisa ser um problema.

Acho o título original em inglês muito mais interessante que o título em português. Quem foi que decidiu adaptar “Enter the Anime” para “Universo Anime”? Não é questão de não ser uma tradução literal, mas sim que muda o significado mesmo.

“Entrar” é um primeiro passo, algo básico. “Universo” implica um escopo necessariamente maior. Mas em meio a tantos problemas que o documentário possui, definitivamente o título é o mais inofensivo deles.

Até porque “Entre no Anime” soa esquisito em todo caso. Mas eu gosto de como essa frase é reminiscente do clássico Evangelion, quando a Misato, ou o Gendo, ou qualquer um (na verdade acho que só os dois) exorta o Shinji para que entre no robô.

 

Shinji, de Evangelion, em excerto apresentado em Universo Anime

 

Em Universo Anime a Netflix quer exortar seu público a entrar no anime. Os animes dela, claro.

Da mesma forma como Shinji jamais se convence, parte da culpa por isso certamente recaindo sobre seus guardiões, Universo Anime parece capaz de fazer alguém preferir ficar longe desses desenhos japoneses mesmo que o mundo dependa disso.

Aliás, japoneses? Apaga isso. Eles demoram a aparecer no documentário.

 

Adi Shankar, produtor de Castlevania

 

Ao invés, após a apresentação, começa com uma longa entrevista com Adi Shankar, o esquisitão responsável pela animação de Castlevania.

Sem dúvida é uma animação muito boa, sua inspiração nos animes dos anos 1980 e 1990 é clara como o Sol, mas é uma produção 100% não japonesa. É um anime?

Há espaço para discutir isso, sem dúvida! Pode-se produzir anime fora do Japão? Castlevania é anime? Avatar é anime? As várias produções chinesas são anime?

Ocorre que o documentário começa com Alex Burunova, sua diretora, admitindo que não sabe nada sobre anime. O objetivo dela é entender, e ao criar Universo Anime ela deveria ajudar seus espectadores a entender.

Mesmo considerando que anime seja estritamente animação produzida no Japão, e mesmo que o documentário seja admitidamente apenas uma porta de entrada, isso já seria uma tarefa hercúlea. Ao começar com uma animação americana e sequer citar que existe um debate sobre a definição do que seja anime, Universo Anime mais confunde do que esclarece.

É quase como se a Netflix estivesse tentando se apropriar do significado de “anime”. Não é um salto argumentativo muito grande dizer que, de acordo com Universo Anime, anime é o que a Netflix disser que é anime.

Depois desse começo complicado, Burunova vai ao Japão, mas não sem antes fazer a pergunta retórica sobre se poderia conhecer mais sobre o país que inventou o anime através de algum documentário, apenas para exibir um excerto de Japan – Anchor in the East, de 1960.

 

Trecho de Japan - Anchor in the East, usado em Universo Anime

 

Um documentário americano sobre o Japão, produzido no pós-guerra, pós-ocupação americana (encerrada em 1952, há menos de uma década). Apresenta o país oriental sob uma ótica ocidental, elogiando o que se lhe parece positivo (quase sempre aspectos “ocidentais”) e apontando os “exotismos” nativos. O Japão seria, assim, uma “contradição”, porque tem elementos em comum, mas, barbaridade, tem coisas diferentes também!

Escolha criativa de mau gosto, mas menos pior que Universo Anime pelo menos o menospreze. Mas não é como se fizesse muito melhor.

Os antigos exotismos foram substituídos pelos novos exotismos. Ou não tão novos assim: em primeiro lugar, continua apresentando o Japão como um lugar com “contradições”, como se assim não fosse em qualquer lugar do mundo.

 

 

Em segundo lugar, pela escolha dos animes citados e pela forma como são apresentados, além da narração, o documentário investe na velha concepção que vem pelo menos desde os anos 1990 de que o Japão e em particular os animes são algo meio transtornado, perturbador. Essa é uma ideia que vai e volta em ondas, não é? Basta um anime como Mirai Nikki fazer sucesso.

Mesmo se fosse verdade que a animação japonesa é particularmente mais perturbadora do que se faz no resto do mundo (e é fácil verificar que isso não é verdade), um documentário que se proponha a apresentar a mídia para um público amplo não deveria se focar em apenas um aspecto.

E definitivamente a forma como o Japão e o japonês é representado em Universo Anime se não for racismo, chega muito perto.

“Feito por desajustados, para desajustados”, é a conclusão de Burunova. Em um documentário que conta com Rilakkuma e Kaoru!

 

Kozo Morishita, presidente da Toei

O Kozo Morishita, com essa cara de vovozinho, não parece muito “desajustado”

 

Todos esses problemas do documentário são perceptíveis no primeiro terço de Universo Anime, ou antes até, dependendo da sua sensibilidade. A partir daí quem tiver paciência para continuar assistindo apenas aceita e releva, porque há algumas entrevistas interessantes, mesmo que em alguns casos elas sejam cortadas muito cedo ou sejam editadas de forma terrível.

A fórmula do documentário logo se revela: a narração diz qualquer bobagem, entra uma entrevista com uma ou mais pessoas relacionadas à produção de um anime específico, repete desde o começo.

É cansativo. Foram 58 minutos que mais pareceram 3 horas. A edição e os cortes deixam até mesmo algumas das poucas boas entrevistas árduas de se assistir.

A narração entre uma entrevista e outra é péssima, e é nela que se concentram as maiores besteiras do documentário, e para completar, ela parece ignorar totalmente o conteúdo das entrevistas. Estão conversando com os japoneses sobre seus processos criativos (ou sobre o que eles queriam fazer se não fizessem anime, enfim…), mas parece que não estão entendendo nem absorvendo nada.

 

"Eu estava começando a achar que estava perdendo o rumo"

E eu nunca achei que o houvesse encontrado

 

E, claro, como eu escrevi lá no começo, Universo Anime trata apenas de animes da Netflix. Isso o faz soar falso mais de uma vez. Que seja uma propaganda é compreensível, mas com tantos problemas nem é preciso ser conhecedor da mídia, ou seja, alguém que não é público-alvo do documentário, para desconfiar que só estão tentando vender gato por lebre.

Tudo considerado, como peça publicitária é bem ruim. Não consigo imaginar como Universo Anime poderia convencer quem nunca assistiu um anime na vida a dar uma chance aos títulos da Netflix.

Quero dizer, pode até funcionar com quem já seja curioso. Mas para aqueles que têm algum preconceito contra animes Universo Anime só irá piorar a má impressão.

E se nem como comercial Universo Anime se salva, como documentário então ele é simplesmente péssimo. Tem algumas boas entrevistas, mas não vale a pena uma hora daquela baboseira toda para alguns minutos de consolação.

 

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