Bom dia!

No título do artigo dessa semana parafraseio Daiba Nana, que ao final de seu duelo com Hikari disse: “Starlight é uma tragédia”. O “Starlight” ao qual ela se refere é a própria peça que elas vão encenar.

No palco, cada atriz tem seu papel pré-definido antes mesmo da peça começar. Não importam os sonhos, anseios e sentimentos dos personagens, se está escrito que irão sofrer, irão sofrer. Se estiver escrito que irão triunfar, triunfarão. Protagonistas e coadjuvantes, heróis e vilões, tudo está escrito antes da peça começar.

Uma peça de teatro é um microcosmo em que vivem seus personagens, mas não foi feito para eles. Foi feito para o deleite do espectador. E talvez isso, mais do que as histórias encenadas, seja o que a ficção tem de mais parecido com a realidade.

O mundo não foi feito para você.

A essa altura é importante mencionar algo que, se a memória não me falha, eu não mencionei ainda nessa série de artigos sobre Starlight: o anime não é apenas sobre teatro, genericamente. É especificamente inspirado no Teatro Takarazuka, japonês, no qual apenas mulheres atuam tanto nos papéis masculinos quanto femininos.

O Takarazuka tem sua própria escola de formação, como a Academia Seisho de Starlight. A principal diferença é que no Takarazuka a divisão entre atrizes que fazem papéis masculinos e as que fazem papéis femininos é rígida: ao se formar, ou antes ainda, cada atriz se torna uma otokoyaku (que faz papéis masculinos) ou musumeyaku (papéis femininos), e vai manter isso por toda sua carreira.

O sistema de Top Star que o anime menciona vem do Takarazuka (sem duelos subterrâneos e girafas falantes, naturalmente). A coisa é que apenas otokoyakus podem se tornar Top Star. Otokoyaku frequentemente são pareadas com musumeyaku, e podem manter a parceria por toda a carreira.

Daí vem as duplas de Starlight. No anime há garotas mais masculinas e mais femininas, não obstante a distinção não é tão clara. A dupla Futaba e Kaoruko é a mais interessante, porque a mais masculina é a Futaba, mas ela não é a líder: não tem altura para isso muito menos habilidade. A Karen, para não variar, é quem está mais fora desse modelo: com Mahiru ela é otokoyaku, mas com Hikari ela é musumeyaku.

Maya e Claudine são a dupla otokoyaku e musumeyaku perfeita de Shoujo Kageki Revue Starlight

Nunca me aprofundei sobre o Takarazuka antes porque achei desnecessário. É uma complexidade a mais que não colabora muito para entender os temas centrais do anime, porque entendo que o Takarazuka é usado só como modelo, ao invés de ele ser o objeto da crítica de Starlight.

Como aludi na introdução, uma peça teatral (ou um teatro em específico) não é o único ambiente em que seus habitantes estão sujeitos à forças superiores. À rigor, o mundo inteiro é assim. Sua escola, seu trabalho, seu lugar na sociedade. É o que chamamos de “sistema”.

É possível um teatro mais justo para suas atrizes? Talvez nunca será possível um teatro perfeito onde todos são plenamente felizes e realizados o tempo todo, mas que dá para ser melhor que o sistema Top Star com a rígida divisão entre otokoyaku e musumeyaku, com certeza dá. O mundo talvez nunca vá ser perfeito também, mas sempre dá para melhorar.

E foi assim que entendi Starlight até agora, e é assim que continuo o entendendo. As histórias pessoais de suas atrizes não são apenas histórias de teatro, mas histórias de vida. Cada uma delas aprendeu um pouco e melhorou um pouco depois de tudo o que passou. Elas mudaram. E pequenas mudanças individuais é um dos caminhos possíveis para as grandes mudanças sistêmicas.

Mas nesse episódio achei necessário finalmente explicar um pouco sobre o Takarazuka porque isso permite entender melhor o comportamento de suas personagens. Ou talvez seja a única forma de entender.

Antes das protagonistas poderem se enfrentar finalmente, faltava uma dupla se resolver: Maya e Claudine. Se o sistema é cruel para atrizes baixinhas como Futaba, alguém como Maya não tem nada do que reclamar. De todas ela é quem menos iria desejar mudança. A otokoyaku perfeita da Turma 99, protagonista da última montagem de Starlight que fizeram, não passa por sua cabeça e ela nem tem motivos para querer mudar o sistema.

Claudine é sua musumeyaku. Embora tenha passado a temporada inteira frustrada, muitas vezes irritada por não conseguir superar Maya, não obstante ela se submete a um sistema que jamais permitiria que ela se tornasse a Top Star em primeiro lugar, independente de seu esforço pessoal.

É por isso que sua reconciliação com Maya ocorre justamente após a dupla ser derrotada por Hikari e Karen. Como musumeyaku, ela tem o dever de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que sua otokoyaku brilhe. É assim que o sistema (o Takarazuka) funciona. Como elas foram derrotadas, ela dramaticamente invocou toda a culpa para si, isentando a parceira da possibilidade de ter cometido erros.

Embora Starlight tenha um exemplo de dupla em que a atriz feminina é a líder (Kaoruko e Futaba), elas não obstante são claramente um caso desviante da norma. O comportamento às vezes traiçoeiro, às vezes manipulador da Kaoruko, e seu desdém com esse último duelo, que ela ameaçou não assistir, a destacam de forma negativa. Dentro do sistema, ela não vai longe.

Assim então que, sendo Claudine a musumeyaku de Maya e tendo aceitado plenamente essa posição dentro desse sistema, e ela jamais tendo cogitado fazer diferente, ela automaticamente não pode por hipótese alguma se tornar a Top Star. Estará sempre ao lado porém abaixo de Maya, e ela aceitou isso tacitamente, e foi por Maya aceita.

Claudine reivindica para si toda a responsabilidade pela derrota

E Hikari, o que ela pensa do sistema? Ele já quase a inutilizou para o teatro para sempre, quando ela foi derrotada nos duelos em Londres. Teve uma segunda chance, mas nunca teve um plano. Ou melhor, tinha um plano: jogar dentro das regras e vencer. O problema daí era a Karen. Ela não queria roubar nada da Karen.

Por isso a Karen foi excluída. Por isso, quando a Karen pulou no palco, e contra as regras entrou nas audições, Hikari a reprovou. Por isso tentou impedi-la de participar depois. Por isso cogitou ela própria ir embora depois do segundo duelo da Karen.

Hikari admite, durante o duelo contra Banana, que jamais havia cogitado mudar o sistema e ser Top Star junto com Karen. Colocado dessa forma parece uma solução muito simples, e é mesmo. Mas é contra as regras, é fora do sistema, por isso lhe parece tão estranho e por isso jamais teria pensado em algo assim por conta própria.

E por isso traiu Karen no final do episódio. Era o destino, afinal. Já estava escrito que seria assim, afinal. No primeiro episódio do anime Karen sonhou que estava no alto da Torre de Tóquio e Hikari a derrubou de lá de cima, da mesma forma como ela fez na Revista da Tragédia (“revista” é a tradução técnica e correta de “revue”, juro).

Isso não quer dizer que Hikari esteja satisfeita com o resultado, porém. Ela apenas é incapaz de pensar fora do sistema. Provavelmente está pensando em alguma solução dentro do sistema, talvez em alguma solução que abuse de suas regras, como a Banana fez com suas infinitas voltas no tempo.

A própria Hikari, inspirada por Karen, já deu uma mostra simbólica de “derrubada do sistema” quando, no duelo com Banana, derrubou a Torre de Tóquio que representa o próprio Top Star no anime. O tsunami que se seguiu quase atingiu o Senhor Girafa, ao mesmo tempo diretor e espectador das audições que reforçam o sistema.

Ao fim e ao cabo, Hikari fracassa. Ela não consegue quebrar o ciclo de tragédia porque não consegue pensar fora do sistema, que é no final das contas um jogo de soma zero: para alguém ganhar, alguém precisa perder necessariamente (link colateralmente relacionado ao tema de jogos de soma zero e não zero – vale a pena ver). Hikari sabe tudo o que sabe porque estudou e aprendeu, mas se deixa arrastar pelo destino.

Karen, por outro lado, não poderia se importar menos com qualquer tipo de “sistema”. Seu maior defeito, que a fazia dormir até tarde e não levar a sério os ensaios no começo do anime, é também sua maior força: ela faz o que ela quer fazer. Karen é instintiva. Foi por isso que ela chegou a resposta que manteve Hikari no palco: basta as duas se tornarem Top Star juntas!

Não sei o que irá acontecer agora. A Hikari deve ter algum plano que envolva algum nível de auto-sacrifício para salvar a Karen. Mais ou menos como Flora se sacrifica para que Claire recupere suas memórias no final de Starlight, talvez Hikari se sacrifique para que Karen não perca seu brilho (ou para que ela perca suas memórias, para não sofrer pela traição e pela perda da Hikari).

Karen, por sua vez, deve continuar insistindo. Talvez se jogue no palco mais uma vez e mude o final de Starlight, o sistema Top Star, e as vidas da Hikari e de todas as suas colegas de teatro.

Comentários