Happy Sugar Life – Primeiras impressões
O que é o amor? Quando temos certeza absoluta desse sentimento? O que se é capaz de fazer por amor e para mantê-lo? Tais perguntas rodeiam a vida da colegial Satou Matsuzaka e sua relação com a menina Shio Kobe. Satou não rejeitava os garotos, sendo conhecida pela facilidade de conquista e sexo. Mas Shio mudou isso. Agora, Satou tem um amor para valorizar e proteger. Recusar confissões de amor e convites para sair formam sua nova atitude. Tudo belo e perfeito. Porém, Happy Sugar Life é uma obra de horror, sangrenta e psicológica, e o primeiro episódio transita confortavelmente (ou perturbadoramente) entre o drama e o mistério. A primeira amostra é assustadora, estranha e inquietante.
No início do episódio, Satou e Shio estão abraçadas no topo de um prédio em chamas. A garota relata seus sentimentos pela menina, os anéis que simbolizam a união delas brilham com a intensidade do fogo e os olhos comunicam uma forte ligação, é assim que Satou anuncia que contará a história do amor entre elas.
Após o que parece ser o prenúncio de uma tragédia, encontramos Satou dispensando um pretendente, deixando claro que o seu coração já foi entregue a outra pessoa. Ela é direta, não vacila em nenhum instante. Tanto os rapazes que cercam o jovem rejeitado como a amiga de Satou, Shoko, certificam a mudança da garota: ela não precisa mais de desconhecidos para afastá-la da carência e do abismo, pois está apaixonada e mora com a pessoa.
A primeira aparição de Shio é bastante idealizada, para reforçar sua inocência, sorrisos e um terno abraço para manifestar a alegria de ver Satou chegar em casa. Harmonia, sintonia perfeita. Elas tomam banho juntas, dormem juntas. Há uma encenação de casamento, com Shio prometendo amar Satou até que a morte as separe e a garota completamente entregue a fofura da menina. O que chama a atenção é Satou dizer que encontrou Shio há poucos dias. Como? Onde? Por que ela vive tranquilamente com uma criança que não é sua irmã, da qual não é representante legal?
Mas para viver esse amor, ela precisa de dinheiro para cuidar, alimentar e vestir Shio. Então, ela troca de emprego, de um cosplay café para um restaurante, como garçonete. Daí que começam os problemas e a personalidade de Satou (uma yandere que começa a mostrar sua natureza destrutiva) nos é revelada. Não que até aquela altura suas esquisitices e situação já não indicassem que a garota possuísse traços de desequilíbrio e violência, mas os acontecimentos no restaurante mostram o que Satou pode suportar para ter Shio ao seu lado e está disposta a fazer para que isso se realize. Muito menos aceitará que privem seu tempo com a menina. E é um misto de egoísmo e inveja da gerente que fará Satou mostrar sua outra face. Tudo começa quando a garota é convidada para um encontro por Mitsuboshi, um colega de trabalho. Satou o rejeita, pois já tem alguém em seu coração. Apesar de se tornar público o “fora” que ela dá no jovem garçom, a aparência “fofa” de Satou faz com que não haja ressentimento entre as funcionárias. Porém, perder espaço para a garota como a mais querida do restaurante é inaceitável para a gerente. Mitsuboshi não retorna ao trabalho após ser recusado pela jovem e a gerente acusa Satou de envergonhar e levar à depressão o rapaz. A mulher começa a explorar Satou, obrigando-a fazer horas extras, diminuindo o tempo que ela passa com Shio, que já está dormindo no horário em que a garota chega em casa. As humilhações continuam, Satou aceita essa condição por precisar do salário. O inferno dela aumenta já que atrai a inimizade de seus colegas.
A gerente corta o salário de Satou, que a leva a reivindicar o pagamento integral. Esse incidente faz vir à tona a real personalidade da mulher, uma manipuladora, que tem sérios distúrbios afetivos, que culminam no abuso psicológico e sexual de seus funcionários (incluindo aí o destino de Mitsuboshi). A gerente quer manter o controle do que chama de seu reino de amor, e quando fala amar também Satou, há um clique na mente da garota, que rememora uma cena em que uma mulher aparentemente se prepara para praticar algo pervertido com ela. Esse é o dispositivo para Satou virar o jogo, usando a informação de tê-la visto com Mitsuboshi em seu escritório, acusando-a de abusar de menores. A garota ainda provoca a gerente, minando sua resistência, apontando como ela cedeu ao ciúme e à inveja. Por fim, grava a confissão de sua chefe.
A cena é bastante reveladora. Além de apontar para uma infância traumática de Satou, expõe o quanto são distorcidos os desejos e os ideais humanos. A conduta inapropriada e perversa (sexo não consentido com menores, o abuso de poder…) da gerente saltam aos olhos, assim como Satou não percebe o que há de irônico em seu discurso, em sua lição sobre o amor para a gerente. Ainda que haja uma distância colossal entre a gerente, que é adulta – sequestra e molesta um adolescente –, e Satou, uma colegial, ela se relaciona com alguém muito mais jovem, que, provavelmente, ainda não atingiu a pré-adolescência. No Japão, são três anos de colégio (koukou), frequentando pelos estudantes de 16 anos a 18 anos. Então, essa deve ser a idade aproximadamente de Satou, que ama de maneira pura e obsessiva uma criança.
Outros aspectos a se ressaltar da cena com a gerente são a frieza e o ar ameaçador de Satou, como ela se mantém na fronteira entre ser um perigo real e imediato, de colocar em risco a integridade física do oponente, e o seu domínio psicológico da situação. E nessa equação delicada, Mitsuboshi não tem muita relevância, desde que Satou conseguiu receber o seu justo salário e reconquistou sua tranquilidade e o tempo que precisa para estar com Shio. O rapaz continua onde foi encontrado, encarcerado e refém do que Satou despreza. Apenas recebe o aviso de que “as mulheres têm o forte desejo de manter as pessoas para si”. E a sentença contém estranhamente a luta da própria Satou a respeito de seu amor.
Em casa, Satou encontra a ingenuidade, o calor e a fofura de Shio que a livra da carga de corrupção que mais uma vez ela foi obrigada testemunhar. O abraço de Shio é a confirmação da doce vida que descobre existir ao lado da menina. Nunca sentiu o amor, mesmo sendo “alvo” constante de confissões sobre o sentimento. Agora que acredita saber o que é o amor, quer mantê-lo e protegê-lo dos vícios do mundo. Assim, dois fatos vêm à tona e são impressionantes: o apartamento em que Satou e Shio vivem é de alguém que foi assassinado pela garota, talvez mais de uma pessoa. Ela agradece aos restos mortais que escondeu em uma sala protegida com alarme e várias fechaduras. A sua felicidade é insana. Reflexos de sua psicopatia. A outra informação é que alguém procura por Shio, que, na verdade, está desaparecida.
O que ocorreu a Satou? Quem ela matou? Como Shio e ela se encontraram? O que acontecerá quando os obstáculos para Satou manter esse amor surgirem? São perguntas que ficam com o espectador após acompanhar o episódio. E que é ótimo que assim o seja. A construção de um terror psicológico precisa de questionamentos, causar inquietação. O que a direção de Keizou Kusakawa (Campione! [2012] e Mahou Shoujo Lyrical Nanoha A’s [2005]) e o roteiro de Touko Machida (de Wake Up, Girls! [2014] e Lucky☆Star [2007]), a partir do mangá de Tomiyaki Kagisora, conseguem sem pressa, jogando com a sensação de estranhamento do público. A arte trabalha com os sentimentos das personagens, sendo suave, com cores que transmitem uma pacificidade – principalmente nos momentos de fofura de Shio, chegando a haver uma explosão de alegria dela, com cinza e vermelho nos mergulhos na profundeza do que há de terrível no ser humano. O contraste é um forte recurso para horror.
O amor de Satou parece ser patológico e a dependência emocional em relação a Shio já estabelecida. Os próximos episódios trarão respostas ou acumularão as dúvidas. Mas, com certeza, não faltará insanidade.