O horror é uma sensação que nos desnuda, abre nossa alma, trazendo à superfície os temores que lutamos para guardar a sete chaves. O horror, de certa maneira, supera o terror naquilo que nos provoca (lembrando que há quem os entenda como sinônimos). Com o terror, somos bombardeados pela ansiedade e medo, entregues à expectativa de algo terrível, trágico, isto é, um pavor que nos acompanha – o perigo na esquina ou a invasão de zumbis. Se aquilo que esperamos não corresponder a esse medo antecipado, que tanto agonia, a frustração dissipa a tempestade. Agora, se ela funcionar, temos o sentimento de horror, que perdura, com o espanto e a repulsa a nos perseguir, atormentar por um tempo. Por isso, é notável como o terceiro episódio de Happy Sugar Life manipula de maneira hábil a tensão, sendo envolvente e perturbador, provocando a cada cena um choque, uma pergunta (na verdade, um nó na garganta, uma dor no peito pela situação da Shio).

O segundo episódio de Happy Sugar Life se encerra com um arrepiante gancho que coloca Satou diante de uma descoberta que gera um fortíssimo impacto nela: as palavras que celebram sua união eterna com Shio já foram utilizadas antes. Asahi recita para se acalmar os mesmos votos, idêntica jura de amor. O ritual que a faz se sentir especial está maculado, e tomar ciência de que Shio já vivenciou semelhante experiência leva Satou ao limite entre a loucura e a sanidade. Pé de cabra na mão, o corpo indefeso de Asahi à sua frente, que ela passa a chamar de “coisa”, e um misto de decepção e raiva. Satou está à beira de ser dominada por um impulso. Mas logo o desequilíbrio cede espaço ao autocontrole quando a sua felicidade com Shio está ameaçada pela sua própria imprudência. Isso revela o quanto a garota é sagaz e, na mesma medida, assustadora.

O doce e o amargo em teste: Satou sabe controlar seus impulsos para preservar o que mais ama.

Por aguardar a recuperação de Asahi, que se recusa a ir para um hospital, e só pensar em procurar Shio, Satou acaba se atrasando. Com o passar do tempo, a demora de Satou começa a deixar Shio aflita. A solidão e a ansiedade começam a tomar conta da criança. Se no episódio anterior flashes de memória indicavam que Shio tinha uma infância em que a violência era presente, suas lembranças evidenciam que a menina carrega um trauma muito pesado. Sozinha, ela não suporta a espera e decide procurar Satou, contrariando a recomendação de não deixar o apartamento. Entre a angústia das quatro paredes e os perigos do mundo, Shio se arrisca a procurar aquela que acredita poder protegê-la.

A solidão e o pânico fazem Shio enfrentar os perigos das ruas para encontrar Satou.

Antes de sair e ser “engolida pela noite”, a figura de uma mulher volta à mente de Shio, uma espécie de alucinação, com quem ela conversa e a guia na decisão de deixar a casa ou cativeiro. O “espírito” deseja que Shio parta e aparentemente quer levá-la em segurança para algum lugar. O subconsciente da menina quer forçá-la a se recordar da mulher que ela acabou por esquecer. O vulto de jeito maternal permanece com o rosto distorcido, o que faz com que o pânico de Shio não seja abreviado.

Satou tem que lidar com um sentimento até então desconhecido, o do ciúme, que ela considera algo bom, que reforça e valoriza seu amor por Shio. Só que agora ela tem a presença ameaçadora de Asahi, que é quem logo ela responsabiliza pelo sumiço de Shio. A série dá um passo para a evolução de Satou fazendo a garota descobrir novas emoções e precisando encarar o seu maior temor: ver-se sem Shio.

A tristeza de quem perdeu o seu doce mais precioso.

Dois personagens que têm bastante espaço no terceiro episódio são Asahi e Taiyo Mitsuboshi. Asahi traz à tona o inferno que Shio e ele viveram, e que são irmãos e que talvez o pai deles (há uma figura masculina assustadora em suas vidas) é um homem extremamente violento. Mais uma vez, os adultos causando uma violenta perturbação nas crianças.

O demônio que assombra a vida de Asahi, Mais um adulto nefasto em Happy Sugar Life.

Já Taiyo acabou por desenvolver uma obsessão por Shio, enxergando-a como a imagem da pureza, a única capaz de livrá-lo da corrupção que agora carrega. Taiyo é uma vítima que se culpa pelo abuso que sofreu. Sendo molestado por uma mulher mais velha – experiente e maliciosa –, acredita que uma garotinha – ingênua e sem maldade – o libertará. Há um fato importante a se ressaltar: a diferença entre o apego de Satou e de Taiyo por Shio. Satou até o momento não demonstrou que sua fixação tenha um conteúdo sexual, é algo que parece estar no plano do ideal. Porém, Taiyo, infelizmente, manifesta uma aversão por mulheres adultas e apresenta um desvio sexual, atração por crianças e parece demonstrar ser capaz de praticar uma obscenidade ou um ato libidinoso. Lembrando que, para o OMS (Organização Mundial de Saúde), adolescentes de 16 ou 17 anos são considerados pedófilos quando têm “uma preferência sexual persistente ou predominante por crianças pré-púberes pelo menos cinco anos mais novas do que eles” (Fonte: Wikipédia).

O traumatizado Taiyo agora faz parte do grupo dos insanos. Shio, em sua inocência, tenta curá-lo.

Taiyo Mitsuboshi encontra seu objeto de desejo, a chave para o seu livramento. Como ele sabe o nome de Shio e o lobo, às vezes, usa pele de cordeiro, a menina concorda em segui-lo. O roteiro de Touko Machida e as expressões e gestos das personagens tornam a cena do parque comovente e repugnante. Vontade de proteger Shio. Raiva e pena de Mitsuboshi, uma vítima e um algoz ocupando o mesmo corpo. Ele é um futuro predador sexual. Shio é “salva” pelos delinquentes que espancavam Asahi, quando ele foi salvo por Taiyo. Os rapazes partem para a desforra, mais violência, sangue, que aciona um gatilho em Shio, que, novamente sozinha, tem na figura materna que passa a acompanhar seu único amparo.

Um episódio sombrio, com um design de som admirável, perturbador na medida certa e em afinidade com a trilha sonora. Becos e sombras têm bastante destaque na construção da atmosfera de Happy Sugar Life. O episódio nos faz pensar na relação entre Satou e Shio, se a criança sofre de síndrome de Estocolmo ou se ela nutre um sentimento de afeição real pela garota.

O inferno de Shio: fragmentos de um passado aterrorizante.

É certo que ainda há muito a se desvendar no que concerne aos mistérios que cercam as personagens, o que leva a um ponto positivo da série: o que há de extremo, não é gratuito, serve à construção do suspense e à caracterização de seus protagonistas. Com Shio enfrentando os perigos da noite e seus pesadelos, que dão testemunha de que ela viveu ou presenciou o inferno, e com Satou sem a sua feliz vida de açúcar, precisando se segurar para não ser tragada pela escuridão, pelo amargo que há na existência, Happy Sugar Life ainda tem muito assombro a provocar. No mais, como proferiu o atormentado comandante Kurtz – de O Coração das Trevas, a obra máxima do escritor britânico Joseph Conrad –, “O horror! O horror!”.

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