O ser humano é um animal dotado de pensamentos, que carrega consigo um conjunto de crenças, por isso apresenta uma complexidade em que ciência, ética, estética e política não dão conta de explicar e atenuar problemas tão difíceis, que parecem irresolúveis, como desigualdade, fome, ganância, guerra, incomunicabilidade… O sociólogo Edgar Morin disse que “É preciso ensinar a compreensão humana, porque é um mal do qual todos sofrem em graus diferentes”.

Compreender o outro é um passo para lidar melhor com as incertezas e os perigos da vida. Num mundo incerto, prolifera-se mais irrefletidamente discursos demagógicos, nos quais defesa de um modo de vida, liberdade e segurança alicerçam o apego às virtudes nacionais, a criação de inimigos e a intolerância ao diferente. Nisso, o auto-sacrifício e a morte do outro são o “fim último” de um discurso ideológico que lança mão de elementos totalitários ou encobre a verdade convocando todos à imolação do  heroísmo. No episódio 3 de Zona de Atrito: Cross Ange: Tenshi to Ryuu no Rondo (Cross Ange: Rondo of Angel and Dragon) e a franquia Yuuki Yuuna Wa Yuusha de Aru (Yuki Yuna is a Hero).

Cross Ange: Tenshi to Ryuu no Rondo é uma série lançada em 2014, que totalizou 25 capítulos. Com direção de Yoshiharu Ashino (D.Gray-man Hallow [2016] e Mahou Shoujo-tai Arusu [2005]) e roteiro de Tatsuto Higuchi, o anime acompanha a princesa Angelise Ikaruga Misurugi, de 16 anos, que de amada pelo povo, ao ser descoberta como Norma (aquelas que não possuem o poder do Mana, e são consideradas criminosas por terem a capacidade de quebrar a luz desta fonte), é condenada a trabalhar como soldado em Arzenal, uma ilha-prisão. Angelize, ou Ange – como será conhecida na base, é obrigada a pilotar um robô humanoide, chamado Paramail, em combates de vida e morte contra bestas gigantes de outra dimensão (semelhantes a dragões, batizadas de DRAGONs, sigla para Dimensional Rift Attuned Gargantuan Organic Neototype).

A princesa Angelise antes do pesadelo Norma

Cross Ange é um mix de gêneros, ação, mecha, ficção científica, ecchi e yuri, e tem evidentes problemas narrativos, de animação e excessivo fanservice. Mas traz na luta de Ange – que se recusa inicialmente a assumir um lugar na revolução que está por vir,  a revelação de que um mundo perfeito, uma utopia sem fome, guerra ou poluição, é sustentado por uma mentira, que separa os designados dos párias. Como todas as funções básicas do cotidiano, em uma sociedade tecnológica, são realizadas através de uma energia chamada Mana, aqueles que não conseguem usar o poder são considerados ameaça a essa sociedade, por serem inclinados à violência, e devem ser exilados. Essas personae non gratae, as Normas, são sempre mulheres. São elas que pilotam os Paramails e se digladiam em batalhas aéreas com os DRAGONs. Assim, a paz será mantida e o sistema de distinção social, consagrado pelo Mana, mantido.

Em Cross Ange está em jogo os dispositivos que conservam a ordem social. O reino pacífico do Império de Misurugi edificou-se a partir da exclusão de indesejáveis. A eles, ou melhor, a elas, prisão, trabalhos forçados ou a morte. Neste contexto, Ange era uma princesa indiferente à situação das Normas e defensora da lei que perseguia e aprisionava as mulheres que não demonstravam habilidade em manipular o Mana. Quando revelada a sua condição de Norma, de uma hora para outra, Ange sofrerá na pele o preconceito naturalizado em seu Império contra o diferente, o Outro.

A piloto-guerreira Ange

É certo que o vilão do anime, Embryo, é um cientista que manipula as tensões políticas para efetivar seu plano de uma nova era, e Ange é a predestinada líder da revolução/resistência, a única capaz de pilotar a lendária máquina Villkiss, e essa oposição movimenta o típico duelo heroína-vilão. No entanto, se não fosse o conjunto de crenças que divide o mundo entre nós e eles, os bons e os maus, a arte da guerra, que precisa tanto da persuasão para se efetivar, não encontraria terreno fértil. Para criar um inimigo é necessário gerar uma ameaça a um modo de vida que se mostre (ainda que tenha defeitos) o melhor possível.

Daí a retórica surge como instrumento de convencimento e conquista de interesses (o discurso deve fazer eco naqueles que escutam, isto é, falar diretamente aos desejos da multidão). Em Cross Ange, a exclusão do Outro, daquelas que não manejam o poder de luz Mana, do convívio social, também representa o controle dos seus corpos, o enfraquecimento de sua determinação, a sua eliminação pelo temor social que passam a ser. Então, a morte do Outro pode ser a solução, como a Solução Final, o plano de aniquilação total do povo judeu (além de Testemunhas de Jeová, ciganos, homossexuais etc.), durante a Segunda Grande Guerra Mundial, promovida pelo regime nazista de Adolf Hitler, ou o extermínio indígena na América, executado por espanhóis, ingleses e portugueses. Para Zygmunt Bauman, a adesão a um discurso e práticas como a do nazismo é possível quando há o consentimento da autoridade governante para a violência, a desumanização das vítimas e a produção social da invisibilidade moral. Três elementos, pode-se dizer, presentes em Cross Ange.

Conflitos sociais (e familiares) em Cross Ange

A prisão para qual as Normas são enviados por serem quem são é uma fábrica de destruição dos corpos, onde o vício pelo combate é o único “remédio” a se apegar. E só o conhecimento sobre a origem do Mana, dos DRAGONs e de si mesmas pode libertá-las.

Yuuki Yuuna Wa Yuusha de Aru (Yuki Yuna is a Hero) é uma franquia que conta com uma série de duas temporadas (sendo a segunda dividida em um prequel e na continuação dos acontecimentos da primeira temporada) e três longas-metragens. No anime, em Yuuki Yuuna Wa Yuusha de Aru (2014, direção de Kishi Seiji e composição da série de Makoto Uezu), no prequel Yuuki Yuuna Wa Yuusha De Aru: Washio Sumi No Shou (2017) e na sequência Yuuki Yuuna wa Yuusha de Aru: Yuusha no Shou (2017), com Daisei Fukuoka no comando e roteiro de Makoto Uezu, as meninas  Yuki Yuna, Mimori Tougou, as irmãs Fuu e Itsuki Inubouzaki e Karin Miyoshi compõem o Clube do Herói (e no prequel as personagens Sonoko Nogi e Gin Minowa). Na primeira temporada elas são alunas do ginásio (Fundamental 2) que praticam ações solidárias em seu cotidiano, pensando justamente em meios de tornar o mundo melhor, agindo com heroísmo. Mas, com a ajuda de um aplicativo de telefone, elas se transformam em meninas mágicas e devem combater misteriosas forças destrutivas que recebem o nome de Vórtex. No processo, descobrem que salvar o mundo que tanto amam e querem proteger tem um custo: usar os poderes significa colocar em risco os próprios corpos, perdendo sentidos e a função de órgãos.

As garotas do Clube do Herói observam o perigo

Yuuki Yuuna wa Yuusha de Aru é um mahou shoujo, com drama, fantasia e uma boa pitada de slice of life. Essa combinação de gêneros nos conduz a uma afirmação que fez ressonância na cultura pop: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades (Homem-Aranha, 2002, direção de Sam Raimi). Mas um elemento novo, ou melhor, um inversão é realizada em Yuuki Yuuna wa Yuusha de Aru: com grandes poderes vêm um enorme sofrimento. Só que elas são heroínas, assumem a responsabilidade e esse sofrimento. Contudo, o ato de coragem das meninas mágicas leva a uma sombra presente na política em tempos de guerra. O auto-sacrifício e a devoção são cultuados em períodos de ameaça à nação. Promessas de um futuro livre de opressões e mais justo tomam o primeiro plano na visão geral sobre lutas armadas. E o “nosso mundo” tem sempre razão. Independentemente do que sacrificamos, a verdade e a vitória nos pertencem. “Na guerra, a verdade é a primeira vítima”, conta-nos um dos principais dramaturgos da Grécia Antiga. Para as heroínas de Yuuki Yuuna wa Yuusha de Aru, a verdade foi escamoteada, e Yuki Yuna e suas amigas, inocentes, abraçam seu destino/convocação sem ter noção dos efeitos colaterais intrínsecos ao seu ideal.

Yuki Yuna em ação (sacrificando-se)

Dois fortes fatores estão em movimento no anime e ambos necessitam de uma alta dose de fé e apego aos símbolos que precisam ser resguardados: o patriotismo e a religião. Mimori Tougou é a que mais se refere à defesa dos valores japoneses. Mas são a religião e o temor do fim dos tempos as promotoras que exigem o sacrifício ao qual elas acabam se voluntariando. Ainda mais por serem escolhidas pela organização religiosa Taisha para lutar – de modo épico – contra os Vórtex, defendendo a humanidade, iluminadas pelos poderes de Shinju-sama, a divindade pela qual têm adoração. A debilidade dos seus corpos versus o dever. Essa é a encruzilhada em que foram colocadas e o senso de responsabilidade torna a decisão de seguir ou abandonar a luta mais complexa.

Só que o conjunto de crenças começa a ruir quando, além do sofrimento individual – corpos que são oferendas para uma batalha que ocorre longe dos olhos do mundo,  Yuki Yuna, Mimori Tougou, Fuu e Itsuki Inubouzaki, Karin Miyoshi e Sonoko Nogi percebem e se afetam com as dores uma das outras. A amizade causa um curto-circuito em um sistema sem fim de auto-sacrifício (antes delas existiram outras heroínas, e depois das garotas do Clube dos Heróis, novas estudantes assumirão o posto e a guerra). Salvar as amigas – e a humanidade –  conduz as meninas ao limite de suas resistências, a esquecer as dores e as consequências ao corpo, mas é um esforço consciente, de esperança e heroísmo.

Em Yuusha no Shou, que dá sequência à primeira temporada, os efeitos devastadores ao corpo são algo presente e o fim do mundo iminente. Um novo auto-sacrifício é exigido. Mais uma vez o sacrifício como única solução é uma ilusão, com possibilidades interditas para que se complete a resolução tomada por autoridades (sejam científicas, políticas, religiosas etc.).

A política – os poderes em geral, seja nos palácios ou nos subsolos, trama suas verdades que permanecerão ocultas, aproveitarão dos pré-conceitos, das ambições e da boa vontade produzidas em larga escala no âmbito social. Daí nos vem Nietzsche à mente, “As convicções são cárceres”. Vigilância, contestação e pensamento, para que a morte do Outro não seja nosso desejo e prática e nem o sacrifício uma ilusão ardilosa.

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