Satou conversa com colegas de classes. Uma delas comenta que a pessoa com quem tinha um caso ou flertava é casada e tem filhos. Sendo uma aluna do colegial, trata-se ainda de uma adolescente e a pessoa em questão, que ela paquerava ou era amante, um homem adulto. A naturalidade do bate-papo é inequívoca. Há áreas suficientemente distantes no coração e na mente humana para serem alcançadas e controladas a partir da noção do certo e do errado. Logo em seguida, o professor Kitaumekawa chama Satou para falar em particular. Breve, descobriremos quem é Kitaumekawa. E também que, em Happy Sugar Life, e na vida, há fantasmas, perigos e sombras demais, ameaçando, devorando ou instigando pesadelos. Não há meio-termo, somente os efeitos devastadores de terríveis práticas abusivas dos adultos, de suas perturbações emocionais e de sua violência, roubando implacavelmente a inocência, ou o que resta dela.

Satou é uma possível vítima de abuso sexual de sua própria tia. Temos flashes que indicam que Shio também pode ter passado por um inferno idêntico. E que o rosto borrado em sua lembrança seja do irmão (?) que a procura tão desesperadamente, e que, talvez, estivessem sob o domínio de algum algoz. Estamos aqui no terreno da especulação. O que há de evidente é que Satou tem uma moral relativa, em que divide os atos e sentimentos em amargo e doce, não em bem e mal. Aquilo que é degradante, impróprio e violento, ela classifica como amargo, e o que se manifesta pelas boas vibrações e ternura, a jovem determina como doce.

Vestígios de um crime: Satou busca se livrar do que está em seu caminho.

Até o momento, tudo o que é doce pertence à infância ou à adolescência (um dos exemplos da relatividade moral de Satou é que não julga o comportamento da amiga Shoko, que mente para os pais e sai com garotos à noite – algo que a própria Satou fazia antes de encontrar Shio – inclusive, a considera “uma boa garota cheia de energia”) e o que é amargo são produções dos desejos dos adultos, seja poder, sexo ou a manifestação de ambos.

Satou e Shoko: momento de afeto na vida de uma garota no limite da sanidade.

Kitaumekawa é um professor que esconde a sua verdadeira faceta: um estuprador que usa a vantagem psicológica proporcionada pela sua função para obrigar suas alunas a fazer sexo com ele. Kitaumekawa é um homem jovem e bonito, a conversa entre as alunas, mencionada no início do artigo, revela que ele conseguiria seduzir as alunas (cometendo assim um crime, há que se enfatizar). Em idade tão deslumbrável e de flertar com o perigo, o poder atrai e fascina. Mas o professor de Satou busca algo que alimente o seu ímpeto por controle e destruição, que tem relação com submeter o outro a sua vontade.

Kitaumekawa percebia em Satou a vítima perfeita, julgava-a em uma condição de risco, desfavorável, frágil emocionalmente, contudo, ao persegui-la à noite e assediá-la em um beco, descobre que a aparência (ele mesmo, que alguém disfarça sua verdadeira natureza) pode ser enganosa. Satou vira o jogo contra o predador sexual, não pela ameaça de revelar sua identidade, o fato de ser casado e ter uma filha ou o criminoso que é, mas por ela ser agressiva e manipuladora (fingir delicadeza) e desmascará-lo como um “tarado masoquista”. E o gosto de Kitaumekawa por ser dominado física e psicologicamente move sua, agora transformada, atração pela garota. Tanto que Satou o convence a se livrar dos corpos dos proprietários da casa em que vive com Shio.

Mais um adulto para a coleção de predadores. Desta vez, um professor tarado e masoquista.

“Você é um adulto terrível” é a frase proferida por Satou para o professor, a sentença que ela emite. Lembremo-nos da chefe do restaurante, que agrediu sexualmente Mitsuboshi, que reaparece agora como colega de Satou no cosplay café. E o que ele passa a carregar depois da experiência de cárcere, da sevícia e do abuso sexual, é a aversão ao toque de um adulto, de uma mulher adulta. Como as reações humanas a um determinado ato podem encontrar diversas respostas para aplacar os efeitos do que lhe foi perpetrado, há quem busque assegurar um cuidado às vítimas que, em outrora, elas foram, trabalhando em centros de atendimentos, clínicas ou pela via judicial, e o que manifesta seu trauma psíquico repetindo o que sofreu ou desenvolvendo alguma perversão ou distorção da realidade.

Mitsuboshi, além da fobia ao toque de mulheres mais velhas, também sofre de um transtorno psiquiátrico, em que deseja sexual ou romanticamente garotinhas. E Shio é o seu objeto de adoração, aquela que o salvará, uma condição similar a de Satou. Porém, Satou não demonstra um apetite sexual por Shio, entende o seu amor como puro e a doçura de Shio a afasta de seu inferno (ainda que a imagem de um yandere lolicon não tenha como ser afastada dela). Mas o amor que se sustenta por algo “nobre” tende a ser mais egoísta e o efeito da frustração em relação a ele, mais devastador, furioso. Algo que se mostra relevante à trama é que a face inocente de Shio é como o último refúgio, a terra consagrada para preservar o que ainda há de puro no mundo. A criança e Satou atraem os tipos dementes, e certamente muitos outros surgirão.

Shio também tem as suas dores, o seu inferno. Ela é mais que a porção doce da vida de Satou.

O que mais chama a atenção no episódio é a culpa e a loucura dos adultos, os rastros que seus atos deixam pelo caminho e para o futuro. Na fala do garoto que procura Shio, entregando cartazes de maneira alucinada, também está a desconfiança e o peso das ações de um adulto. Mesmo sofrendo severamente nas mãos de arruaceiros, ele não quer que chame a polícia. Recusa a ajuda dos adultos. Opressores e negligentes. Seja indivíduo ou a instituição que ele representa. O abismo é imenso e repleto de monstros.

O monstro sorri para Mitsuboshi: mais um pervertido na área.

Satou, neste painel de abusos e compulsões que é Happy Sugar Life, tem uma lucidez assustadora a respeito das insídias do mal (ou amargura), mas responde de maneira excessiva – mas racional – ao perigo que acredita rondar sua relação (o seu amor) com Shio. Em um mundo repleto de insanidades, Satou, já que as ações vis com as quais se depara vêm de adultos, pode ser confundida com uma anti-heroína, pois que não deixa impune o que ocorre com ela. Aí está o detalhe: as suas respostas são referentes a sua sobrevivência e preservação de seu amor por Shio.

Happy Sugar Life agora está em um terreno movediço. Enfatizar tanta insanidade pode ser uma faca de dois gumes: ou o excesso denuncia certa irrealidade em sua composição, ou a atenuação confunde-se com a falta de coragem. Com Shio lidando com o seu próprio pesadelo (o que leva à pergunta, onde Satou a encontrou?) e Satou descobrindo que o ritual de casamento que a criança e ela fazem, não é algo novo para Shio, o que pode estar ameaçado na segurança que a garota acredita ter encontrado neste amor? Satou matará o suposto irmão de Shio? Destruirá o passado dela? Que futuro a aguarda, agora que suas juras de amor eterno com Shio deixaram de ser especiais?

O vidro de doces de Satou prestes a quebrar. Mais um crime?

O horror psicológico mostra-nos um espelho que não queremos encarar, distorcido, fragmentado, em decomposição. Uma parte da natureza humana fingindo não existir, que, quando vem à tona, seu potencial para devastação emocional e destruição física é imensa. Um dos pontos assustadores a esse respeito é que pode ser um ciclo que gera mais algozes e vítimas. Happy Sugar Life está aí para nos causar tal desconforto.

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