Haiji ultrapassa a linha de chegada

Bom dia!

Kaze ga Tsuyoku Fuiteiru, ou Run with the Wind em seu título internacional, é a história de como dez universitários com experiências, objetivos, e lugares na vida bem diferentes, treinam, se classificam e correm em uma tradicional maratona de revezamento no Japão, e o que isso significou para as vidas deles.

Originalmente um livro de autoria de Shion Miura (Fune wo Amu), Kaze Fui teve antes uma adaptação para mangá com seis volumes no total, ilustrado por Sorata Unno e publicado na Young Jump entre 2007 e 2009. O anime, objeto dessa resenha, contou com 23 episódios, transmitidos entre outubro de 2018 e março de 2019.

 

Kakeru e Haiji

 

O protagonista de Kaze Fui é Haiji. Ou talvez seja Kakeru? É difícil determinar qual dos dois é o protagonista, e tendo a crer que, por toda a transformação que passou e por ter inspirado vários dos demais personagens, o protagonista seja Kakeru, mas é o Haiji quem dá o pontapé inicial e quem orquestra o clube de atletismo da Universidade Kansei, então vou começar por ele.

Haiji é filho de atleta, e foi um atleta até o ensino médio, quando um problema no joelho o tirou das pistas. Não é que algo tenha acontecido com seu joelho, mas sim que seu joelho não se desenvolveu como o necessário para um atleta. Acontece o tempo todo, inclusive com grandes atletas profissionais que acabam precisando de tratamentos complexos e caros para consertar o que a natureza fez.

E assim a carreira de corredor de longa distância de Haiji chega ao fim de forma prematura. Ele nunca teve a oportunidade de descobrir se corria porque gostava de correr ou se era só para chamar a atenção de seu pai. Qual é o significado de correr? Essa é a dúvida que perturba o personagem durante anos.

 

O Haiji da época em que abandonou as pistas

 

Uma vez na universidade, ele eventualmente decide que quer, sim, correr, nem que seja só mais uma vez. Ele precisa correr. Ele precisa descobrir porque ele corria. A Universidade de Kansei não tinha nenhuma tradição no esporte – na verdade, não tinha uma equipe de corrida. O trabalho de Haiji deveria começar desde aí.

Nico, Yuki, Rei, Shindo, Musa, o Príncipe, os Gêmeos, Kakeru, um de cada vez é recrutado para a equipe que Haiji está montando para participar da Hakone Ekiden, uma maratona universitária de revezamento realizada logo após o ano novo. Só que tem um detalhe: nenhum deles sabe que está entrando em um clube de atletismo.

(Quase nenhum, o Kakeru, o último, sabia.)

E com exceção de Nico e dos gêmeos, nenhum deles era atleta. Os gêmeos jogavam futebol. Nico havia sido corredor no ensino médio, como Haiji, mas abandonara o esporte por não ter potencial por conta de sua constituição física (ele é muito grande e pesado). Nesse sentido, ele é parecido com Haiji.

Isso é algo que fica implícito: a equipe montada por Haiji não era uma equipe para vencer, mas uma equipe para responder a sua dúvida: por que correr? Por isso ele precisava de alguém semelhante a ele, como Nico. Por isso ele precisava de alguém absolutamente incapaz de correr, como o Príncipe.

Se Haiji conseguisse fazer uma equipe tão heterogênea e tão inadequada para a maratona chegar na Hakone Ekiden e conseguir concluí-la, isso por si só já deveria ser capaz de dar muitas respostas.

Bonito na teoria, na prática o Haiji no começo do anime foi um babaca manipulador que está sempre sorrindo – assustador. Tentava convencer seus colegas de que obteriam alguma vantagem que eles gostariam de ter – os gêmeos atrairiam garotas; o Rei teria algo vistoso para seu currículo ao apresentá-lo às bancas de seleção de candidatos a funcionários; Shindo orgulharia seus pais.

Quando isso não funcionava, ele partia para a chantagem, velada ou explícita. Como o Príncipe se mudaria com sua imensa e pesada coleção de mangás, e para onde? Musa arranjou um emprego temporário por indicação de Haiji, então já sabe, né? E por aí vai.

Isso torna um pouco difícil simpatizar com o personagem no começo da história, mas no final das contas não importa. Todo mundo acaba correndo e, cada um a seu modo, se diverte e aprende algo importante para a vida.

 

Os dez bravos de Kansei

 

São 23 episódios não de uma história de uma equipe de atletismo, mas de 10 personagens, 10 pessoas que, cada uma por seus motivos, correu ao lado das demais. As pistas por onde correram eram as mesmas, mas o caminho da cada um era diferente. O objetivo de todos era o mesmo, mas as motivações eram individualíssimas.

Os mais empolgados desde o começo foram Jota e Joji, os gêmeos. Não porque eles amem correr, mas porque são bastante simplórios e a argumentação de Haiji de que correr faria eles chamar a atenção de garotas – do país todo, dado que o evento é nacional – funcionou perfeitamente com eles.

Que se note que não é uma linha de raciocínio errada, de todo modo, se quisessem poderiam mesmo usar sua condição de atletas para tentar impressionar garotas. Quis o destino, porém, que isso não fosse necessário, por duas razões.

Primeiro porque eles passaram a gostar de correr. Em particular, Joji passou a gostar muito de correr, e alcançar Kakeru se tornou seu objetivo. Jota entendeu isso e, tendo vivido a vida inteira sempre junto do irmão, percebeu que era a hora de seguirem caminhos diferentes. Mas não tão rápido!

Porque a segunda razão é que Hana, uma garota que está terminando o ensino médio e que ajuda no treinamento da equipe, se apaixonou por um deles. Eles não sabem qual dos dois, mas esse era o objetivo inicial deles, não é? No final, eles acabam juntos, pelo menos até descobrirem de quem é que Hana gosta.

 

 

Shindo veio do interior, de uma região montanhosa, distante, e isso significa duas coisas: ele está acostumado a andar bastante, principalmente em terrenos íngremes e condições adversas, e faz mesmo muito tempo que não vê sua família. Correr a Hakone Ekiden é uma chance de mais ou menos estabelecer um contato de qualidade com sua família, a orgulhando em cadeia nacional, e usar o que ele sabe para isso. Fazer o que só ele pode fazer.

Nico é o apelido de Akihiro, e vem de nicotina, porque ele é um fumante inveterado. De atleta a fumante que vive trancado em seu quarto e está empurrando a faculdade com a barriga, Akihiro mudou bastante por causa de uma única frustração na vida.

Ele sabe das suas limitações e procura não deixar suas expectativas crescerem demais, bem como ocultar a empolgação que sente com a ideia de poder correr mais uma vez. É o fechamento que ele precisa. Como personagem mais velho, ele é mais calmo e soa como a voz da ponderação em algumas ocasiões.

Musa é um estudante de intercâmbio africano, e sente-se particularmente incomodado com os pequenos preconceitos do dia a dia que sofre por causa disso. Não, ninguém tenta lhe arremessar pedras nem apontam o dedo para ele, mas as pessoas ao seu redor estão sempre esperando que ele seja como um “típico africano” que eles só conhecem da televisão.

No contexto da maratona, não, Musa não tem um porte físico invejável, nem nunca foi atlético para começo de conversa. Mesmo assim, talvez ele possa correr, e até gostar de correr, sem deixar que as expectativas de terceiros pesem em seus ombros.

 

 

O Príncipe é um otaku assumido. Faz parte de um clube de mangá e seu quarto está lotado de mangás. Ele é branco como um fantasma e magro como um esqueleto. O total oposto do que é preciso para alguém correr uma maratona. Mas ele é importante para Haiji: se ele puder correr, qualquer um pode.

O trabalho mais duro é o de colocar o Príncipe em forma suficiente para poder competir. Ele continua sendo o pior de todos, de longe. Ele arrasta a equipe para baixo. Ele continua não gostando de correr. Mas ele usa a moral que aprendeu em mangás para se convencer a continuar tentando. A continuar se esforçando.

Porque as histórias que ele tanto ama dizem que a amizade é o bem mais importante e que o esforço é capaz de superar qualquer barreira. Se ele não conseguir colocar isso em prática, não só irá frustrar seus amigos do clube de atletismo, como descobrirá que aquilo que acredita, aquilo pelo que vive, é uma mentira.

O Príncipe serve também como alívio cômico na primeira metade do anime, e suas caras, mesmo quando ele está só no fundo da cena, são impagáveis.

 

 

Yuki é alguém orgulhoso da independência que possui, e bastante inteligente. Possui problemas familiares, mas não fala sobre o assunto até a segunda metade do anime. Sua mãe se casou de novo quando ele era adolescente e ele se sentiu excluído por causa disso, mas é correndo que ele vai descobrir qual é a verdade.

Os métodos de Haiji pareciam inúteis com Yuki, e ele corria por não ter outra opção, mas não se esforçava em particular também, acreditando que a equipe não tinha chance nenhuma, mas ao perceber que até Nico estava se esforçando, Yuki decide se esforçar também.

De longe, o mais difícil de lidar foi o Rei. A ideia de que correr a Hakone Ekiden poderia ajudar com suas entrevistas de emprego pareceu funcionar inicialmente, mas quando ele começou a perceber as dificuldades e limitações da equipe, e em momentos particularmente frustrantes da própria vida, quase abandonou tudo. Ele é sério demais e orgulhoso demais para tentar qualquer coisa sem certeza de que irá ter sucesso.

 

Kakeru não tinha concorrentes à altura no ensino médio

 

Por fim, o Kakeru. O melhor atleta de todos. Era um corredor prodígio no ensino médio, mas assim como era solitário nas pistas, sempre na frente, se tornou socialmente solitário também, e seu afastamento do grupo levou a um evento que o tirou das pistas e alimentou o rancor de Sakaki, que era do mesmo colégio e foi para outra universidade, frequentemente cruzando o caminho dos personagens do clube de Kansei e sendo grosseiro e maldoso com eles.

Kakeru precisou não só recuperar a confiança e o prazer de correr, como precisou superar sua tendência a se isolar dos demais. Todos estavam olhando para suas costas, afinal, ele era motivo de inspiração, todos iriam aonde ele fosse. Mais do que o Haiji, se o Kakeru dissesse que eles poderiam, então todo mundo acreditaria. Mas Kakeru precisava ter essa mentalidade de grupo primeiro.

Em termos técnicos, apesar da longa duração e das constantes cenas de ação (corrida, afinal), Kaze Fui nunca decepciona. E mais do que bem animado, o anime conta sua história com sucesso fazendo uso ora sutil, ora grandiloquente da narrativa visual.

 

 

O enredo segue o mesmo padrão, com destaque para as deixas de final de episódio que frequentemente alimentam a expectativa pelo próximo. As coisas nem sempre são o que parecem ser, e em várias situações uma sequência de fatos contribui para a construção de um clímax, sempre satisfatório.

Kaze ga Tsuyoku Fuiteiru é um anime esportivo, mas não é um anime sobre esporte. Sobre corrida, sobre maratona, nada disso. É um anime sobre o aqui e o agora, um anime sobre a vida.

A pista está lá, independente de você correr ou não. Da mesma forma, a vida está passando, independente de como você a está vivendo. Descobrir o significado de correr se transforma em descobrir mais sobre si mesmo.

 

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