Um deus maledicente envia um protagonista amoral e sociopata para outro mundo ser um herói de guerra para levar a versão local da Alemanha à vitória no equivalente ao que foram as nossas guerras mundiais enquanto várias questões morais ligadas à guerras são revelados em toda sua crueza.

Não bastasse o conteúdo da história, ela vem do Japão, cujos animes e mangás de guerra com frequência no mínimo evitam tocar em qualquer tema polêmico, preferindo o tom heroico, épico ou ufanista, e com alguma frequência é desavergonhadamente imperialista ou revanchista mesmo.

O último episódio não poderia ser mais direto: é tudo culpa do Homem.

E até essa culpa é, a seu modo, subversiva. Normalmente, quando vemos ou lemos alguém afirmar que o Homem deveria ser mais racional e menos passional para evitar seus problemas (tanto em ficção quanto em discursos do mundo real defendendo as mais diversas causas), a razão vem banhada de luzes e é defendida pela boca de pessoas boas (ou que se querem boas). Em Youjo Senki, Tanya faz seu discurso acusando a irracionalidade do ser humano na penumbra de uma sala com as luzes apagadas, em um clima pesado, cheio de tensão e fumaça no ar. E ela própria, claro, não é flor que se cheire; alguns dos piores e mais vis atos de guerra saíram da sua cabeça ou foram executados por suas próprias mãos.

O episódio em si não teve nenhuma ação. A parte mais importante e mais longa foi a conversa entra Tanya e o Tenente-Coronel Rerugen, aparentemente o sujeito mais racional, moral, e também o com menos poder no alto escalão (a rigor, acho que ele não pertence ao alto escalão, apenas trata diretamente com os comandantes com razoável frequência; mas do ponto de vista da Tanya faz pouca diferença). Ao invés de tentar usar os fatos históricos de seu mundo os quais ela já conhece, o que seria obviamente inútil e ela seria no mínimo taxada de louca, Tanya argumenta a respeito da natureza humana. É aí que ela faz seu discurso sobre como os homens não decidem apenas de acordo com a razão e como ela é apenas um dos fatores considerados ao se tomar uma decisão. E friamente falando, faz sentido que seja assim.

Ao fim do anime o Reino Aliado declarou guerra ao Império, enquanto remanescentes da Entente e da República se agrupam no Continente Sul (a nossa África) para continuar a resistir. O equivalente russo também está se preparando de alguma forma enquanto os Estados Unificados já iniciaram uma campanha de recrutamento para entrar na guerra ao lado de seus aliados europeus (aliás, como será o nome da Europa nesse mundo?) e contra o Império. Não tenha dúvida que tudo isso só foi possível porque os exilados remanescentes do exército republicano decidiram continuar a guerra. Uma decisão passional, é lógico, mas uma paixão que conquistou o mundo e alastrou a guerra, mudando a maré dela para o seu lado. Então no fim das contas foi racional, de alguma forma…?

O povo britânico (ou qual seja o gentílico do Reino Aliado nesse mundo) ovaciona seus feiticeiros de guerra enquanto eles sobrevoam a capital rumo ao continente. Festejam a entrada oficial do país na guerra. Racional? Nos Estados Unificados, a filha de Sioux, ainda muito jovem para a guerra, se alista. Racional? Em seu discurso ela afirma querer derrotar o Império em nome da liberdade, para que ninguém mais tenha que sofrer o que ela sofreu. Racional? Guerra em nome da paz. Si vis pacem parabellum, cravou Vegécio em algum momento entre os séculos IV e V. Se quer a paz, prepare-se para a guerra. Irracional?

De fato, tudo fica mais complicado e imprevisível quando se busca interpretar e prever ações humanas tomando por pilar a racionalidade (ou seu oposto, a falta dela). Somos muito mais complexos do que isso, e o fracasso do comando militar imperial em perceber algo tão fundamental custou-lhe a vitória. Toda a mega-ação realizada para encurralar a República, todas as vidas perdidas, todos os ataques realizados inclusive contra suas próprias cidades, subitamente tornaram-se vãos. Enquanto os generais banqueteavam-se, os soldados que sobreviveram não tiveram tempo nem de lamber as próprias feridas antes que a guerra recomeçasse – e dessa vez maior, mais cruel, mais desesperada.

O discurso final de Tanya no deserto sul-continental

Essa é mais uma das verdades inconvenientes sobre a guerra que Youjo Senki desnudou, e assistir um demônio em forma de garotinha revelar tudo isso e pior, sendo na maioria das vezes a única voz humana e razoável, foi um prazer. E claro que foi também uma diversão à parte identificar as referências às guerras mundiais no anime. Como referências e curiosidades finais, o general republicano é bem parecido com Charles de Gaulle, que durante a Segunda Guerra comandou a resistência de seu país do exílio; e parece que Tanya ocupou uma posição semelhante à que foi de Rommel na Segunda Guerra. Não apenas por ser uma comandante no Norte da África, mas também pela dificuldade em receber suprimentos por conta da guerra extenuante sendo travada em várias frentes e pelas linhas de suprimidos por demais esticadas e tendo que atravessar o mar, onde os britânicos eram imbatíveis.

Uma segunda temporada de caretas da Tanya seria divertida

  1. Com este artigo, lá se vai um anime com referências históricas, bem interessantes. O episódio 12 e último de Youjo Senki, foi muito bom, deixou um gosto amargo de quero mais, mas ele tinha que acabar de qualquer maneira. Achei bem interessante a maneira como eles encaixaram a filha do coronel Syoux, Mari. Eu pensava como o estúdio modificou algumas coisas em relação ao material original, que já não fossemos ver a Mari a inscrever-se para o exército dos Estados Unificados de Atlanta. Mas o discurso dela, para o recrutador, foi bem fervoroso, que até o recrutador ficou sem palavras.e aceitou a candidatura dela, mesmo a Mari não tendo idade para se candidatar. Aquele exército da República que conseguiu fugir, fez-me lembrar da Legião Estrangeira, esta foi a última camada de resistência do exército francês na Segunda Guerra Mundial. E tu tens razão, aquele comandante supremo do exército da República parece mesmo o General Charles de Gaulle (aquele que o Roosevelt não gostava nada). Quanto à Tanya e o Império, eles estão numa situação complicada, agora que a Guerra é mundial, mas também a culpa, foi daqueles generais desleixados do Império, não souberam aproveitar a oportunidade de esmagar de vez os seus inimigos, agora estão na pior situação possível. Aquele discurso da Tanya no deserto, foi, como eu hei-de de dizer, bem fervoroso, imagino como os católicos reagiram aquele discurso dela.
    Eu não poderia estar mais de acordo, com a tua frase do início do artigo, a culpa é do homem.
    Como sempre mais um excelente artigo de Youjo Fábio. Foi um prazer, acompanhar os teus artigos sobre este anime. Quem sabe um dia, não saia uma segunda temporada de Youjo, ai sim, os acontecimentos dele seriam bem interessantes.

    • Fábio "Mexicano" Godoy

      Você com certeza se lembra como eu não dava nada para esse anime após seu primeiro episódio. Mas fazer o quê? Youjo Senki começou no meio da história e mostrou apenas ação. Uma ação muito boa, mas já estou calejado de animes com ação boa e história ruim. E tinha aquele character design…

      Mas conseguiram sim fazer um anime competente, com uma boa história, que eu gostei e sentirei falta. Se apropria de suas referências históricas e as usa de forma inteligente, não apenas como muletas para otakus militares, para contar sua própria história sobre a vil natureza humana, a verdadeira causa das guerras, e nosso mal costume em colocar a culpa em seres de outro plano pelas desgraças que nós mesmos nos infligimos.

      Sentirei saudade. Quero segunda temporada!

      Obrigado pela visita, pelo comentário, e por acompanhar Youjo Senki comigo! É uma pena não haver nada parecido que o substitua nessa nova temporada, mas quem sabe nós podemos nos divertir com outros gêneros? A barra de animes já revelou tudo o que iremos cobrir para a temporada, hehe.

      • Eu também não dava nada, para Youjo, mas à medida que a história dele foi avançando ele ficou muito interessante. Eu sentirei falta das referências históricas, que Youjo usou e abusou e eu gostei. Que venha a segunda temporada, mas desta vez animada por outro estúdio, a beleza da arte da novel, foi destruída com o caracter design que o estúdio NUT usou, mas valeu a pena acompanhar Youjo.
        Acho que nunca vi o Anime21 comentar tantos animes, isto é a prova que o vosso esforço compensa. Esta temporada estou conquistado por Bahamut, Alice to Zouroku e Sukasuka. Além de outros animes, que parecem promissores nesta temporada de Abril de 2017.

      • Fábio "Mexicano" Godoy

        Esses três são ótimos mesmo!

        Sobre o character design de Youjo Senki, em que pese ser mesmo esquisito (parece ser muito diferente do mangá, mas já vi quem diga que é bastante parecido com o original da light novel), foi já com esse que me acostumei. Seria ainda mais estranho aparecer algo totalmente diferente. Se tiver um time skip podem aproveitar para melhorar um pouco ao envelhecer as personagens, mas se mudar demais parecerá outro anime.

      • Se numa possível segunda temporada de Youjo, eles envelhecem os personagens, ao menos para mim seria uma jogada de mestre. Gostaria de ver a Tanya numa versão mais velha.

      • Fábio "Mexicano" Godoy

        Ela é bem nova, mais velha seria apenas … adolescente. Ok, japoneses adoram garotas adolescentes, vejo muito fácil isso acontecendo, hahaha!

      • Esses teus comentários cómicos e satíricos são muito bons. Já imagino a tua gargalhada ao escreveres este comentário.

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